"Democracia com fome, sem educação e saúde para a maioria, é uma concha vazia"
Nelson Mandela.
É notória a realidade da crise contemporânea vivida pelas democracias liberais. Governos democraticamente eleitos valem-se, por vezes, de espaços abertos pelo próprio regime para fragilizá-lo. Elementos, valores e instituições típicas que caracterizam a democracia moderna são desacreditados. Tal realidade não passou despercebida, inclusive, pela academia. Estudos como de Levitsky e Ziblatt (2018), Mounk (2019) e Da Empoli (2019), para citar apenas três obras estrangeiras já traduzidas no Brasil, evidenciam os processos que podem levar à deterioração da democracia. Ademais, muitos indicadores produzidos por institutos internacionais que medem a qualidade das democracias no mundo, como o V-Dem (Varieties of Democracy), identificam a tensão que atinge os regimes democráticos.
As evidências indicam: a democracia, regime político comprometido com o pluralismo e os direitos fundamentais, encontra-se ameaçada em muitos países. A ponto de se considerar uma "regressão democrática global" (DIAMOND, 2021). Em 1974, apenas 22% dos países do mundo podiam ser identificados como "democracias liberais". Ao final dos anos 90, a maioria das nações havia construído democracias ou iniciavam esse processo, como, no caso brasileiro, com a Constituição de 1988. Uma notável expansão, definida por Samuel Huntington como "a terceira onda de democratização". Esse movimento, entretanto, adquiriu um sentindo inverso: há um processo de desconsolidação de regimes democráticos, o que conduz ao seu mais baixo nível dos últimos 25 anos (DEMOCRACY REPORT 2022).
O advento da vigente Lei Fundamental conformou a arquitetura do Estado brasileiro, vinculando-o a instituições responsáveis pela permanência dos valores de uma ordem democrática. Nesse sentido, sobressai o princípio da separação dos Poderes, afirmado como cláusula pétrea, e o seu inerente sistema de freios e contrapesos, exercido também com o contributo dos Tribunais de Contas.
No que se refere mais diretamente ao controle externo, a história também carrega exemplos de afronta à democracia e aos valores republicanos, ao mesmo tempo em que revela algo de muito emblemático: quanto mais independentes e efetivos os sistemas de controle, mais consolidadas e protegidas se apresentam as democracias.
É nesse cenário que se descortinam as mais importantes missões das Cortes de Contas: além de reafirmar as garantias constitucionais e os direitos fundamentais através de suas competências, contribuir com a ordem democrática e o estado de direito, ao lado dos Poderes de Estado. Para tanto, os órgãos de controle dispõem de uma ampliação inédita de suas competências e autonomia conferidas pela Carta da República, viabilizando-se, por exemplo, o exame da qualidade do gasto público, o que permite avaliar os resultados e o impacto de programas governamentais e de políticas públicas na melhoria da vida das pessoas.
Um dos campos de atuação afirmativa dos Tribunais de Contas, dentre tantos outros, é o da educação, no sentido de assegurar a todos o acesso e a permanência na escola, com aprendizado, independentemente de onde nasçam ou da renda das famílias. Aliam-se a esse tema os trabalhos na área da saúde, do meio ambiente, dos resíduos sólidos, da sustentabilidade e dos direitos das mulheres, dos afrodescendentes, dos indígenas e das pessoas com deficiência.
Ainda: os Tribunais de Contas detêm o poder/dever de informar a população a respeito de boas práticas na gestão pública, para discutir ações e medidas voltadas ao enfrentamento da corrupção e do desperdício. E, também, para corrigir os rumos daquelas gestões que se afastam de sua missão republicana e democrática. Dentre os desafios do controle externo nessa seara está o de contrastar os ataques à transparência, que se repetem no Brasil (LOPES; MEYER; LINHARES, 2020), estimulando de modo afirmativo o controle social e, com ele, o direito de o cidadão se informar e ser informado [1]. Com isso, incrementa-se um debate político substantivo, reduzindo os espaços para a proliferação de discursos por vezes manipulatórios e a propagação de fake news, típicos mecanismos de ameaça à democracia.
Portanto, falar em democracia com seriedade pressupõe a participação cidadã, a qual deve ser incentivada e assegurada pelos Tribunais de Contas, de modo que seja fiscalizado o uso efetivo dos recursos públicos no atendimento das necessidades da sociedade. Ou, em outras palavras, se foram fornecidas respostas satisfatórias aos mais legítimos anseios, através da avaliação do impacto das políticas públicas na vida da população. Ao se avançar cada vez mais nesse ponto, com a devida transparência inerente ao processo, estaremos colaborando para um debate político mais substantivo.
E se há muitos desafios, também temos instituições sólidas que afiançam o desenvolvimento de uma ordem densificada por valores democráticos. Afinal, a democracia é sempre uma tarefa a ser realizada. É obra inacabada, que se constrói a partir do enfrentamento das inquietações próprias de cada tempo. Mas cujos alicerces postos pela ordem constitucional não admitem um caminho que implique retrocessos.
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Referências
DA EMPOLI, Giuliano. Os engenheiros do caos. São Paulo, Vestígio, 2019.
DEMOCRACY REPORT 2022. Autocratization Changing Nature? V-Dem Institute at the University of Gothenburg. Disponível em: https://v-dem.net/media/publications/dr_2022.pdf. Acesso em 05 ago. 2022.
DIAMOND, Larry. Democratic regression in comparative perspective: scope, methods, and causes, Democratization, v.28, nº 1, p. 22-42, 2021. Disponível em: https://www.tandfonline.com/doi/pdf/10.1080/13510347.2020.1807517?needAccess=true. Acesso em 9 ago.2022.
LEVITSKY, Steven; ZIBLATT, Daniel. Como as democracias morrem. Rio de Janeiro, Zahar, 2018.
LOPES, Mariana Tormin Tanos; MEYER, Emilio Peluso Neder; LINHARES, Emanuel Andrade. Pandemia e Erosão da Democracia Constitucional: uma Análise dos Ataques à Transparência no Brasil. RDP, Brasília, v.17, nº 96, p.93-122, 2020. Disponível em: https://www.portaldeperiodicos.idp.edu.br/direitopublico/article/view/4544. Acesso em 5 ago. 2022.
MOUNK, Yasha. O povo contra a democracia: porque nossa liberdade corre perigo e como salvá-la. São Paulo, Companhia das Letras, 2019.
[1] A propósito, vide o Programa Nacional de Transparência Pública, coordenado pela Associação dos Membros dos Tribunais de Contas do Brasil — Atricon
*Cezar Miola é presidente da Atricon (Associação dos Membros dos Tribunais de Contas).