Na última grande audiência pública realizada pela Assembleia Legislativa antes da data prevista para votação do Projeto de Lei Complementar (PLC) 259/2023, que prevê a reestruturação do IPE Saúde, servidores públicos alertaram que os planos do governo do Estado para garantir um reforço de R$ 720 milhões nas receitas do instituto não serão concretizados. Isso ocorre porque, segundo os servidores, o aumento de alíquotas de contribuição e a cobrança sobre os dependentes irão resultar na saída de milhares de pessoas do sistema.
Realizada pela Comissão de Saúde e Meio Ambiente da Assembleia, em conjunto com outras comissões da Casa, a audiência teve o objetivo de discutir o PLC que tramita em regime de urgência e está previsto para ser votado na próxima terça-feira (20). Ela foi acompanhada por representantes de mais de 40 entidades representativas de servidores estaduais.
Na abertura do evento, o diretor-presidente do IPE Saúde, Bruno Jatene, fez uma apresentação sobre a proposta do governo Eduardo Leite (PSDB). Jatene destacou que, atualmente, o instituto opera com um déficit mensal de R$ 36 milhões e que, em 2022, o déficit financeiro total foi de R$ 440 milhões.
Audiência Pública debateu o projeto de reestruturação do IPE Saúde | Foto: Joana Berwanger/Sul21
Segundo o Jatene, o maior problema para a crise do IPE Saúde é o fato de que a sinistralidade — relação entre custos e receitas — do instituto está em 148%, enquanto a média dos planos saúde privados é de 85%.
Neste sentido, aponta que um estudo atuarial apresentado por técnicos ao conselho de administração do instituto ressaltou que a idade avançada dos servidores contribuintes e o fato de dependentes não pagarem por contraprestação estariam na raiz dos déficits e seriam a justificativa para a proposta do governo. Segundo o estudo, 43,2% dos usuários do IPE Saúde seriam dependentes não contribuintes.
O PLC propõe o aumento da alíquota do plano principal — paga por todos os servidores que utilizam do IPE Saúde — dos atuais 3,1% para 3,6%. Contudo, o maior impacto para os servidores viria da implementação de outras duas medidas: a taxação de dependentes em até 35% do valor de referência dos titulares e a cobrança de coparticipação em exames e procedimentos de até 50%. Para contrabalancear cobranças excessivas, seria estabelecida uma trava global de no máximo 12% de contribuição ao IPE Saúde em relação à remuneração total do servidor.
Com as medidas, o governo do Estado espera aumentar em R$ 720 milhões por ano a receita do IPE Saúde, sendo que R$ 107 milhões viriam do aumento da contribuição direta dos servidores, R$ 107 milhões da contribuição paritária do governo do Estado e a maior parte, R$ 506 milhões, da cobrança sobre os dependentes. A previsão do governo é de que, após a aprovação do projeto, o IPE Saúde passaria a operar com equilíbrio financeiro após três meses.
Contudo, ao longo da audiência, entidades representativas de servidores públicos e deputados da oposição ao governo Leite alertaram que o aumento de arrecadação esperado pelo governo não irá se concretizar, uma vez que os usuários não teriam condições de absorver o impacto do aumento das alíquotas.
Pesquisa foi entregue por Filipe Leiria (esq.) e pelo presidente da União Gaúcha, Mário Rheingantz, ao deputado Neri, o Carteiro, presidente da Comissão de Saúde e Meio Ambiente | Foto: Joana Berwanger/Sul21
Diretor de Comunicação da União Gaúcha, Filipe Leiria apresentou os resultados de uma pesquisa (ver a íntegra ao final) realizada com 454 servidores, entre os dias 31 de maio e 7 de junho, apontando que 71,6% dos entrevistados disseram que existe a chance de deixarem o IPE Saúde em caso de aprovação das medidas. Quando questionados sobre a intensidade dessa possibilidade, 40,6% disseram ter “muita chance” de deixar o IPE Saúde.
Entre os motivos apresentados para a saída, 71,7% citaram o descredenciamento dos prestadores de serviço, 66,2% mencionaram o fato da cobrança ficar muito cara para os titulares e 65,9% disseram que ficará muito caro pela cobrança dos dependentes.
De acordo com estimativas da União Gaúcha, considerando a média de dependentes, a contribuição real dos servidores com o IPE Saúde deixará os atuais 3,1% e passará, em média, para 6,7% do salário total, o que representaria que a contribuição, na prática, mais do que dobraria.
“Isso não se compara nem de perto ao reajuste, por exemplo, que os planos privados estão pleiteando, que é 9% de recomposição inflacionária. Então, nós estamos falando de uma redução real, aliás, não só real, nominal, porque nós vamos reduzir normalmente o salário das pessoas se essa proposta prosperar”, diz Leiria.
A pesquisa aponta ainda que 34,5% dos servidores pretendem migrar para o SUS, 47,7% migrarão para um plano de saúde privado e 17,8% disseram ainda não saber.
Contudo, Leiria alertou que a pesquisa pode ainda estar subestimando o impacto do PLC, uma vez que a média salarial dos entrevistados para a pesquisa é superior à média real dos servidores, enquanto os menores salários serão os mais impactados pelo aumento.
Além disso, ainda há um certo desconhecimento do funcionalismo sobre a proposta. Enquanto 93% dos entrevistados disseram saber que o PLC eleva a alíquota principal de 3,1% para, 3,6%, apenas 66,3% disseram conhecer a taxação de dependentes, que terá o maior impacto.
“Este projeto é sobre expulsar segurados para o Sistema Único de Saúde, que vão acabar sobrecarregando o SUS e, consequentemente, as prefeituras. Logo, nós entendemos que esse projeto precisa ser retirado”, diz Leiria.
Para Leiria, o governo deveria inicialmente adotar medidas em relação ao passivo de dívidas que o próprio Estado tem com o IPE, como o não pagamento da contribuição referente a precatórios entre 2010 e 2021, que somaria R$ 356 milhões em valores atualizados até dezembro de 2021. Outro passivo seria o não repasse da venda de imóveis pelo governo, cujos valores deveriam ter sido revertidos para o instituto.
Para além da retirada de, no mínimo, o regime de urgência do PLC, o que permitiria mais tempo de discussão da matéria, a principal cobrança dos servidores durante a audiência pública foi em relação à não recomposição da inflação aos salários desde que José Ivo Sartori assumiu ao governo em 2015.
Entre 2015 e 2022, quando Leite concluiu o seu primeiro mandato, a inflação calculada pelo INPC acumulou alta de 61%, mas os servidores receberam um único aumento geral de 6%, em 2022. A defasagem salarial e a consequente defasagem na contribuição com o IPE seria o problema de fundo da crise e não estaria sendo atacado pelo PLC, alertaram os servidores.
“Sabemos que existe a crise do IPE, mas se trata de um projeto de desestruturação do Estado e um projeto de arrocho dos servidores”, disse o secretário-geral do Sindjus, Fabiano Salazar.
Como exemplo da incapacidade de servidores absorverem mais uma medida que, na prática, significa redução salarial, Salazar citou matéria publicada pelo Sul21 nesta terça-feira (13), apontando que servidores de nível médio do Estado estão precisando recorrer a doações de cestas básicas para conseguir se alimentar — reportagem também referenciada por outros participantes da audiência.
Presidente do Cpers, Helenir Schürer, alertou para impacto das medidas no IPE Saúde e no SUS | Foto: Joana Berwanger/Sul21
Na mesma linha, a presidente do CPERS, Helenir Aguiar Schürer alertou em sua fala que a aprovação do PLC agravará a crise no IPE, em razão da prevista debandada de usuários, e irá colocar um peso sobre o SUS.
Ela cita como exemplo da debandada os funcionários de escola, que representam a maior parte dos 24 mil servidores que recebem um salário base inferior ao mínimo nacional — dado revelado na matéria de terça-feira do Sul21.
“O governo deu 6% de reajuste em nove anos, mas os funcionários de escola não receberam, porque foi descontado da parcela do completivo. Agora, o governo quer taxar em até 12% esses servidores, um aumento que em muitos casos vai ser de 300%. Essa contribuição é totalmente impossível”, disse. “A cobrança por um dependente com mais de 59 anos chega a R$ 453, mesmo com a trava global, chega a R$ 287 [para os funcionários de escola]. É uma proposta extremamente maldosa, sem nenhuma consideração com aqueles que ganham os menores salários. Eu tenho uma desconfiança, ou a proposta do governo é realmente tirar quem ganhar pouco ou acabar com o IPE”, complementou.
Secretária de Planejamento, Governança e Gestão, Danielle Calazans falou como representante do governo após a apresentação da pesquisa da União Gaúcha e após as falas de diversos servidores. Muito vaiada pelos presentes, ignorou os alertas de que as estimativas de aumento de receita não se concretizarão e defendeu que a “contribuição de todos” era muito importante, uma vez que cada mês que passa sem a aprovação do projeto resultaria em um novo déficit de ao menos R$ 36 milhões.
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