Negociado por mais de seis anos entre o governo estadual e o governo federal, o regime de recuperação fiscal (RRF) do Rio Grande do Sul começará a vigorar no dia 1º de julho. Homologado em 20 de junho pelo presidente Jair Bolsonaro, o plano de recuperação gaúcho foi estruturado com o intuito de viabilizar a retomada do pagamento da dívida com a União.
Criado pelo governo Michel Temer, em 2017, e reformulado pelo Congresso durante a gestão de Bolsonaro, o RRF foi concebido para socorrer os Estados com desequilíbrio fiscal. O programa prevê a retomada gradativa do pagamento do passivo com o governo federal, em troca da implantação de uma agenda de ajuste fiscal.
Além do Rio Grande do Sul, Goiás e Rio de Janeiro já aderiram ao regime – no caso do RJ, o plano ainda está sendo negociado com técnicos do Ministério da Economia.
No RS, a agenda reformista começou ainda na gestão de José Ivo Sartori e teve continuidade no governo de Eduardo Leite/Ranolfo Vieira Júnior. Além do encaminhamento das privatizações de estatais (CEEE e Sulgás), foram aprovadas reformas administrativa e previdenciária e a criação de um teto de gastos, que limita o crescimento das despesas do governo pela próxima década.
O objetivo é dar fôlego para que o Estado volte a pagar as parcelas da dívida. A quitação voltará a ser feita a partir de 2023, de maneira gradual, em uma escadinha crescente de 1/9 da parcela a cada ano. Serão pagos 11% da parcela em 2023 (cerca de R$ 400 milhões), 22% em 2024 e, assim, sucessivamente. Em 2031, ao final do período do RRF, a prestação volta a ser integral.
Embora o repasse das parcelas estivesse suspenso por liminar do Supremo Tribunal Federal (STF) desde 2017, a decisão provisória poderia cair a qualquer momento. Nesse caso, o governo estadual teria de retomar, de imediato, o pagamento da parcela cheia, que equivale a aproximadamente R$ 4 bilhões anuais.
Durante o período de vigência, o RRF será supervisionado por um conselho formado por três pessoas: um indicado pelo governo do Estado, outro pelo governo federal e um terceiro pelo Tribunal de Contas da União.
Caberá a esse colegiado monitorar o cumprimento do plano e apresentar relatórios mensais sobre a situação financeira do Estado. O conselho também poderá recomendar mudanças no plano para garantir sua execução e propor medidas como a suspensão de contratos ou obrigações do Estado que não estiverem em conformidade com o RRF.
Regras do RRF
Ao aderir ao regime de recuperação fiscal, no início do ano, o governo estadual concordou em se submeter a algumas condicionantes impostas pela lei federal que instituiu o mecanismo. O objetivo é garantir o rigor fiscal necessário para a retomada do pagamento da dívida com a União.
Essas vedações, entretanto, podem ser afastadas a partir de agora, desde que haja previsão no plano de recuperação fiscal ou compensação financeira, via redução de outra despesa ou aumento de receita.
O plano homologado pelo governo federal prevê ressalvas às vedações em valores globais por poder ou órgão do Estado. Dessa maneira, o Executivo ou os demais órgãos e poderes (como Judiciário, Assembleia e Ministério Público) podem, por exemplo, conceder reajustes salariais, desde que o impacto fique dentro do limite de despesa previsto.
Como o plano de recuperação fiscal será revisado a cada dois anos (ou a qualquer momento, caso o governo estadual demande), essas regras também podem ser alteradas ao longo do tempo.
Detalhes sobre o impacto em algumas medidas administrativas
Reajuste ao funcionalismo
Aumentos, vantagens ou reajustes para categorias específicas poderão ser concedidos se as ressalvas do plano comportarem ou se governo conseguir compensar a repercussão nas contas públicas. O impacto também não poderá furar o teto de gastos, regra que limita o crescimento das despesas com pessoal ao valor que foi gasto no ano anterior acrescido da inflação. A revisão geral anual prevista no artigo 37 da Constituição Federal, que permite a recomposição da inflação, e o pagamento de vantagens obtidas por servidores em sentenças judiciais não estão vedados.
Contratação de servidores e mudanças em carreiras
A realização de concurso público, a nomeação de servidores e a reestruturação de carreiras poderão ser feitas se o governo comprovar que há condições de custear o impacto financeiro ao longo do tempo ou se o custo não ultrapassar o limite de gastos proposto nas ressalvas. Contratações temporárias poderão ser feitas normalmente.
Criação ou reajuste de auxílios
Afora o que estiver previsto nas ressalvas, auxílios, vantagens e bônus só podem ser criados ou reajustados se o valor for compensado com cortes em outras despesas contínuas no mesmo órgão ou poder. Por exemplo: se o Judiciário reajustar um auxílio, terá de tirar recursos de outra área de seu orçamento.
Investimentos
Podem continuar normalmente, porque são enquadrados como despesas extraordinárias (não contínuas). Entretanto, não poderão crescer mais do que o limite imposto pela lei do teto de gastos estadual.
Convênios com municípios e entidades
Por regra, o governo não pode celebrar novos convênios que envolvam a transferência de recursos para outros entes federativos ou para organizações da sociedade civil. Há exceções em caso de acordos destinados à prestação de serviços essenciais, a situações emergenciais e a atividades de assistência social. Também está liberada a renovação dos que já estiverem vigentes.
Impostos
Na vigência do regime, o Palácio Piratini não poderá mudar as alíquotas ou as bases de cálculo de impostos caso isso implique em queda na arrecadação. Também está vedada a vinculação das receitas de impostos em áreas diferentes do que estiver previsto na Constituição Federal, como saúde e educação. A vedação não impede reduções em caso de imposições por parte de lei federal ou de decisões judiciais - como no caso recente em que o STF determinou a fixação de alíquotas de ICMS de energia e telecomunicações em 17%.
Financiamentos
O RRF permitirá ao Estado contratar uma operação de crédito de US$ 500 milhões junto ao Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID) para pagar precatórios. Outros financiamentos estão vedados, salvo para mecanismos como programas de desligamento voluntário (PDVs), auditoria no sistema da folha de pagamento e reestruturação de dívidas.
Visões distintas para resolver a dívida
A adesão ao regime de recuperação fiscal foi uma das principais bandeiras da gestão de Eduardo Leite. Em 2020, Leite e o secretário da Fazenda, Marco Aurelio Cardoso, se envolveram incisivamente na discussão da lei complementar federal aprovada no Congresso que alterou as regras do regime.
A nova legislação estendeu o prazo do RRF e facilitou o ingresso do Rio Grande do Sul no programa. Além disso, deixou clara a viabilidade da adesão sem a privatização do Banrisul e da Corsan.
A despeito das restrições, Cardoso considera que a imposição de uma agenda de responsabilidade fiscal deixará um legado positivo ao Estado e dará previsibilidade ao pagamento da dívida, antes pendurado em uma liminar.
— Quando a gente tem um desarranjo fiscal, o cidadão é quem paga a conta. Seja com menos serviços, menos investimentos ou chamado a pagar mais impostos. O regime tem a ver pontualmente com a dívida, mas tem por trás um planejamento financeiro de controle de gastos que respeita o dinheiro do contribuinte — salienta.
O secretário da Fazenda também pondera que o RRF não impõe vedações “absolutas”, e que os próximos governadores poderão, por exemplo, reajustar a remuneração do funcionalismo, desde que demonstrem a fonte de recursos para pagá-lo:
— Muitas vezes é simpático fazer promessas sem deixar claro de onde vem os recursos. É justamente esse esforço fiscal que dará margem de decisão aos futuros governantes.
A avaliação do governo sobre a conveniência da adesão ao RRF não encontra eco em setores da oposição, à direita e à esquerda, e no funcionalismo público. O principal argumento contrário ao mecanismo é de que a dívida do Estado com a União já teria sido paga ou de que o estoque seria menor do que os R$ 75 bilhões cobrados por Brasília.
Para o auditor do Tribunal de Contas Filipe Costa Leiria, o Estado dificilmente conseguirá cumprir a projeção de superávit fiscal prevista no plano de recuperação fiscal. Com isso, aponta, o governo pode ter dificuldade em efetivar os gastos mínimos demandados pela Constituição em áreas como educação e saúde.
— Os dados de superávit exigidos estão muito acima da capacidade do Estado, e não viabilizarão a renovação das ressalvas quando ocorrer a primeira revisão, exceto se houver alguma mudança estrutural no plano — avalia.
Ex-presidente da União Gaúcha em Defesa da Previdência Social e Pública, entidade que reúne servidores de diversos órgãos do Estado, Leiria ressalta que o governo deveria rejeitar o acordo proposto pela União e voltar a discutir a dívida na esfera judicial:
— Precisamos retomar a discussão na arena judicial e buscar o afastamento ou a anulação dessa dívida. Convalidar o pagamento da dívida é inviabilizar o Estado —sustenta.