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Quanto valorizamos cada vida?

Leia artigo de Atila Iamarino para Folha de São Paulo

Escrito por Atila Iamarino para FSP14 de Abr de 2020 às 10:34
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Uma das primeiras evidências da cultura humana com a qual nos identificamos é o cuidado com outros. Cuidado que vem de longa data, como fósseis dos nossos parentes e ancestrais primatas mostram. Como um Homo erectus adulto que morreu há quase 2 milhões de anos banguela, só com alguns caninos na boca, que passou anos se alimentando de comida macia que alguém provavelmente providenciava.

Shanidar 1 foi um humano neandertal adulto que viveu mesmo tendo perdido pelo menos parcialmente a audição, o olho esquerdo, parte de um braço e do movimento das pernas. Ele não chegaria à idade adulta se não contasse com a ajuda dos outros. Há muito tempo escolhemos fazer nosso destino. É o que todos que fazem o juramento de Hipócrates ainda votam por fazer, adiar a morte cuidando dos vivos. Essa é a fronteira que estendemos a cada avanço da medicina combinada com a ciência.

Agora estamos em um momento da nossa história no qual essa vocação da humanidade será posta à prova mais uma vez. Agora as armas que criamos enfrentando pandemias passadas podem fazer da Covid-19 um surto muito menos letal. Graças às vacinas que desenvolvemos nos séculos 18 e 19, conseguimos extinguir um dos vírus mais letais que nos atormentava por séculos e matou milhões, o da varíola, e sabemos qual pode ser nossa saída. Inventamos os respiradores e muitos cuidados das UTIs nas décadas de 1950 e 1960 para lidar com o lado debilitante da pandemia de poliomielite que paralisou os músculos de tantas crianças. Desenvolvemos remédios antivirais para salvar vidas que seriam perdidas para a Aids, outra pandemia que ainda está em curso, embora mais lento.

Foi essa cultura que nos trouxe até 2020 com a maior população humana que o mundo já viu, mas com a menor proporção de humanos desnutridos que o mundo já viu. À base de muita ciência e de muito crescimento econômico e às custas de muito uso de recursos naturais. É do alto desse conforto que enfrentamos uma versão turbinada de uma velha ameaça. Uma pandemia de um vírus respiratório capaz de se espalhar tão rapidamente e para tantas pessoas que nos fez encolher a maioria das economias.

Não estamos despreparados como antes. Não encaramos uma punição divina ou uma maldição, encaramos a Covid-19, um surto de pneumonia aguda causado por uma infecção. Quem causa esse mal-estar não são maus ares, é um vírus, o Sars-CoV-2. Um organismo tão pequeno que não usamos nossos olhos para ver sua coroa de espinhos, a corona. Usamos microscópios. E não dependemos de divinação para saber o que vai acontecer nem precisamos perder milhões de vidas para saber disso. Temos um dom — ou maldição para alguns — que nossa consciência e a inteligência humana nos dá, o dom de antever o futuro.

Dependemos de epidemiologia, da infectologia, da história, de números, projeções e dados demográficos que mostram uma pandemia que dobra de casos a cada 3 a 7 dias e uma demanda: respiradores e cuidado médico. Sem isso, sua mortalidade pode mais do que dobrar de 1% a 2% dos doentes para mais de 4% — especialmente por causa da sua consequência mais mordaz, a proporção de um a dois entre cada dez doentes que precisam do cuidado médico. Seria o suficiente para incapacitar qualquer sistema de saúde do mundo se a pandemia seguisse seu curso natural.

É usando esse dom que decidimos nos isolar em escala mundial para diminuir a velocidade com que a pandemia se espalha. E é esse mesmo dom de antever problemas que nos indica o que vem pela frente, uma crise econômica de mesma escala. Seja pela parada planejada e voluntária ou pela parada imposta pela incapacitação e morte das pessoas, como enfrentou a Itália, país que segundo o banco Goldman Sachs pode chegar a uma dívida de 160% do seu PIB até o começo de 2021 se continuar parada. Com base nesse tipo de estimativa, dos bilhões ou trilhões de dólares ou euros gastos para se manter vidas ou de lucro por manter vidas, é que começamos a ver uma pressão econômica para retomar a vida.

Para alguns é uma questão bem prática. O dinheiro para qualquer ação, incluindo manter os hospitais funcionando, precisa vir de algum lugar. E conforme conseguimos conter o vírus, essa pressão econômica se torna cada vez mais forte. Para outros, como este biólogo que vê onde chegamos como uma conquista cultural e científica, além de econômica, trata-se de uma outra escolha. Não da falsa dicotomia entre vidas e manter economia funcionando, mas como uma escolha real entre agirmos como seres pensantes, conscientes e culturais, como agentes do nosso destino, ou como vítimas de uma tragédia natural, dos arroubos dos deuses econômicos.

Caminhamos para a escolha entre agir de acordo com esse conhecimento ou não. Quem fez o juramento de Hipócrates já escolheu. Profissionais da saúde seguem o caminho da vida, tão empenhados em defendê-la que se isolam das famílias, arriscam-se em condições precárias e enfrentam uma onda que sabem que vai virar um tsunami. Vamos usá-los como os soldados modernos que mandamos para o sacrifício com um desejo de "boa sorte" enquanto empilhamos as vítimas nas portas dos hospitais em nome dos deuses econômicos que já nos abandonaram neste ano? Ou vamos assumir o caminho de agentes do nosso destino e escolher manter o isolamento das pessoas, medida que sabemos que funcionam e que demandam muito menos desses profissionais essenciais?

Como alguém que acredita no poder transformador da ciência, eu prefiro dar o tempo necessário para que ela possa salvar mais vidas. Prefiro respeitar quem já fez sua escolha, garantindo a saúde física e mental de quem garante a minha saúde nos hospitais. Cuidar do próximo é uma capacidade humana que agora podemos escolher exercer para milhões de pessoas. Assim como podemos deixar a pandemia correr seu curso natural, saturar o atendimento e reverter as chances de sobreviver à uma pandemia ao estado de cada um por si que tivemos por toda nossa história.

Trata-se de escolher incluir ou não a maioria dos doentes, independentemente de idade ou pré-condições de saúde que não eram uma sentença de morte até 2019, dentro do sistema de cuidado que criamos e do qual desfrutávamos até ontem. Quem faz a economia são pessoas, não o contrário. Quem salva vidas são pessoas. Priorizemos pessoas.​

Atila Iamarino graduou-se em biologia na Universidade de São Paulo (2006), fez doutorado em microbiologia pela mesma instituição (2012) e realizou estudos de pós-doutorado na Universidade Yale, nos EUA (2013-2014).

   

 

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