Robson Silveira da Luz foi nosso George Floyd, mas poucos aqui notaram. Floyd trabalhava como segurança em Minneapolis, nos EUA, e foi barbaramente assassinado pela polícia no dia 25 de maio de 2020. Já Robson, que morreu mais de 40 anos antes, aos 27 anos, foi um feirante negro que morava na zona leste de São Paulo.
Junto com alguns amigos, ele voltava de um baile black no dia 18 de junho de 1978, quando decidiu pegar um cacho de banana de um caminhão de frutas, numa feira em Guaianases, onde trabalhava. Preso em flagrante, como mostra o pesquisador Lucas Scaravelli, foi levado pela Polícia Militar para o 44º Departamento de Polícia, do mesmo bairro.
Estávamos no ano de 1978, época da face mais dura e violenta do regime militar. Robson foi torturado e morto por policiais militares que estavam sob a chefia do delegado Alberto Abdalla; nunca mais voltou para casa. A polícia disse à sua mulher, grávida naquela época, que ele “sofrera um acidente”.
Na mesma época, quatro jogadores de vôlei negros foram impedidos de entrar e jogar no Clube de Regatas Tietê por conta de sua cor. A abolição da escravatura havia ocorrido 90 anos antes, mas a cor era (como ainda é) um impeditivo e uma forma de discriminação naturalizada e silenciosa.
O caso de Robson, a discriminação aos atletas e o assassinato de outro cidadão negro, o operário Newton Lourenço, morto pela polícia do bairro da Lapa, no Rio de Janeiro, naquele mesmo momento, não “passaram em branco”. Ao contrário do que se tem dito, os associativismos, o jornalismo e as várias formas de militância negra nunca “estiveram calados”.
A questão é que tem sido muito mal formulada e encaminhada em nosso país: na verdade, quem se calou, sistematicamente, foram amplos setores da sociedade branca e da mídia brasileira. Nos Estados Unidos, os “afro-americanos”, seguindo critérios estatísticos locais, correspondem a 12% da população; aqui, pretos e pardos, nos termos do IBGE, são 56% e, mesmo assim, permanecem ainda muito silenciados por um racismo estrutural e institucional dos mais perversos, porque “naturalizado” no nosso cotidiano.
A falsa coincidência de tantos casos de racismo causou grande comoção entre os militantes negros e negras brasileiros, ainda nos anos 1970. Enquanto a grande imprensa quase ou nada publicou, o jornalista negro Hamilton Cardoso escreveu, naquele mesmo ano de 1978, uma matéria denunciando o assassinato de Robson Luz para o jornal alternativo Versus.
Mesmo sob forte pressão, a mobilização negra não desapareceu no período da ditadura. Em São Paulo, no ano de 1972, e como mostram Petrônio Domingues e Mário Augusto Medeiros, era muito atuante o Centro de Cultura e Arte Negra (Cecan). Também a imprensa negra estava viva em São Paulo, a partir de jornais como Árvore das Palavras (1974), O Quadro (1974), Biluga (1974) e Nagô (1975), que alcançavam da capital aos municípios.
No Rio de Janeiro, a partir de 1975, jornais como Simba (Sociedade Intercâmbio Brasil-África), o IPCN (Instituto de Pesquisas das Culturas Negras) e o Ceba (Centro de Estudos Brasil-África) mantinham-se particularmente ativos. No Rio Grande do Sul, o Tição (criado em 1977) continuava na luta.
Nessa mesma época, surgiram movimentos com perfis diferentes, mas que engrossavam a resistência negra, como o Ilê Aiyê, ou simplesmente Ilê, o mais antigo bloco afro do carnaval baiano, cuja criação data de 1974.
De toda maneira, esses episódios, ainda pouco conhecidos e divulgados na história brasileira, acabaram se transformando num estopim para a (re)organização das lideranças negras de São Paulo no final da década de 1970.
As repercussões e a revolta diante do assassinato de Robson Silveira da Luz foram motivo para uma reunião promovida, ainda em junho de 1978, com diversos grupos e entidades negras, tais como o Cecan, o Grupo Afro-Latino-América, a Câmara do Comércio Afro-Brasileiro, grupos de atletas e artistas negros e outros. Foi nessa ocasião que se decidiu criar o Movimento Unificado Contra a Discriminação Racial (MUCDR), que deveria organizar um ato público contra o genocídio da população negra e denunciar episódios de racismo.
No dia 7 de julho de 1978, nas escadarias do Theatro Municipal de São Paulo, reunindo organizações culturais, entidades negras e representantes de vários estados, foi criado um movimento com características nacionais.
Logo no momento de formação da entidade foi adicionada a palavra negro; assim, o grupo político passou a ser designado como Movimento Negro Unificado Contra a Discriminação Racial (MNUCDR), posteriormente simplificado para Movimento Negro Unificado (MNU). Vale a pena destacar que o MNU lutava por democracia em plena vigência do regime militar e com uma dupla missão: denunciar a existência do racismo e criar estratégias para combatê-lo.
Assim, se parte da população brasileira, branca e privilegiada, acreditava que havia racismo nos EUA, mas não por aqui, a organização, para se contrapor, mostrava que uma possível redemocratização teria que passar pelo combate e pela denúncia ao racismo.
Aos que pensam que a repressão atingiu basicamente a classe média branca engajada, é bom salientar que a ditadura militar vinha, também, prendendo vários militantes e jovens negras e negros, bem como tentando, sistematicamente, esvaziar qualquer pauta contra o racismo.
Em primeiro lugar, buscava estigmatizar e deslegitimar os ativistas, chamando-os de cópias dos movimentos norte-americanos. Em segundo, fazia-se contrapropaganda, exaltando uma pretensa democracia racial brasileira. Em terceiro, assim como hoje chamamos de torcedores aqueles ativistas negros que se manifestam nas avenidas contra o autoritarismo do governo, naquele tempo se procurava desqualificar o movimento a partir de atributos que desfaziam da sua autenticidade.
A manifestação histórica de 7 de julho de 1978 rompeu, assim, com o suposto silêncio dos grupos negros impostos pela ditadura militar. Nesse evento, estavam presentes cerca de 2.000 pessoas que protestavam contra os episódios de violência contra negros em São Paulo e contra o genocídio negro de uma forma geral.
Lá estavam muitos negros e negras anônimos, jovens que curtiam os bailes de soul music —os bailes black de São Paulo—, mas também operários, estudantes, jornalistas, artistas, atletas, trabalhadores do comércio e lideranças sindicais e de associações e várias lideranças negras, entre os quais Neuza Pereira, Flávio Carrança, Hamilton Cardoso, Vanderlei José Maria, Milton Barbosa, Rafael Pinto e Jamu Minka.
O protesto teve o apoio de entidades de São Paulo, Bahia, Minas Gerais, Pará, Pernambuco e Rio de Janeiro. Prisioneiros da Casa de Detenção enviaram um documento de apoio ao movimento, e, desde então, a data entrou para o calendário das lutas contra a discriminação racial. Em novembro daquele ano, o Movimento Negro Unificado participou do 1º Congresso Nacional pela Anistia, denunciando a violência policial contra os negros no Brasil, as condições sub-humanas da população carcerária e as torturas existentes nos presídios.
Levou muito tempo, mas depois do período da redemocratização, o delegado Alberto Abdalla, responsável pela prisão de Robson, foi condenado pela morte do jovem, juntamente com outros policiais, mas não foi jamais punido.
Já Robson da Luz virou símbolo da luta contra o genocídio negro, ao mesmo tempo que o MNU se tornou uma organização nacional e um dos vários movimentos sociais de negros e negras hoje atuantes em defesa da igualdade racial e dos direitos dessa população. O assassinato de Robson se transformou em mote, igualmente, para uma série de denúncias contra o “esquadrão da morte”, a “polícia mineira” e o “mão-branca”, sinônimos de extermínio de negros no Brasil entre as décadas de 1970 e 1980.
No entanto, se Robson virou ícone, até hoje pouco se sabe de sua vida. Essas são perversas invisibilidades, num país que continua a matar nas grandes periferias do país gerações de jovens negros de baixa renda que muitas vezes não conseguem sair do anonimato que lhes é impingido pelos números frios da polícia.
Essa é também uma velha/nova história que faz da branquitude uma espécie de código partilhado, um lugar de privilégio daqueles que sistematicamente solapam e impedem que essas populações ocupem lugares de poder, façam parte das universidades, estejam presentes na liderança do ambiente corporativo, atuem nas Redações e nos demais ambientes de trabalho.
Hoje, os brasileiros até admitem que há racismo no país, mas ninguém admite ser racista ou conivente com uma estrutura que sistematicamente discrimina negros e negras nas áreas da saúde, da educação e do trabalho. De tão naturalizado, há quem finja não enxergar esse sistema persistente de subordinação.
Quem inventou o racismo foi a sociedade branca. Portanto, cabe a nós brancos nos associarmos, como aliados, à luta antirracista —termo proposto por Angela Davis e, no Brasil, difundido por Djamila Ribeiro— e não permitir que denúncias como o assassinato de crianças como Ágatha, João Pedro e Miguel “caíam no vazio”.
No mundo todo estão ocorrendo manifestações contra o racismo que defendem a democracia. Falta a boa parte dos brasileiros —aqueles entre nós que desfazem dos debates sobre ação afirmativa e cotas, negam o racismo e, em seu lugar, advogam uma suposta meritocracia e universalidade sem notar que esses conceitos dizem respeito a uma realidade majoritariamente branca e europeia— entender que não existe democracia com racismo, como bem mostraram Silvio Almeida e Flávio Gomes.
O racismo não é um problema exclusivamente dos negros —faz parte de uma agenda republicana brasileira. Perpetuando continuamente a discriminação, as elites brancas brasileiras se equilibram entre a cegueira social e uma forma de amnésia coletiva. Para o racismo não há desculpa.
*Lilia Moritz Schwarcz é antropóloga e historiadora, é professora da USP e da Universidade Princeton (EUA). Autora, entre outros livros, de "Sobre o Autoritarismo Brasileiro", "Brasil: Uma Biografia" (com Heloisa Starling) e "Dicionário da Escravidão e Liberdade" (co-organizado com Flávio Gomes)