O Estado se confunde com os servidores públicos. Afinal, os serviços públicos não são realizados pelas coisas, pelas máquinas, prédios ou computadores. São realizados por pessoas, de carne e osso. Não são as viaturas que fazem a segurança pública, são os policiais; não são as escolas que fazem a educação, são os professores; não são os postos de saúde nem os hospitais que fazem a saúde pública; são os profissionais da saúde. Sem os servidores públicos as instituições do Estado e os serviços públicos não se concretizam. O Estado, portanto, é o que os servidores públicos fazem no dia a dia, e só se fortalece no fortalecimento da ação destes servidores.
Mas o ministro Paulo Guedes parece não pensar assim. Ele tenta convencer a sociedade que os servidores prejudicam o Estado e dificultam a prestação dos serviços públicos. Chegou até a dizer que os servidores seriam parasitas do Estado. Ora, parasita é algo que se instala em um organismo e passa a viver dele, muitas vezes causando prejuízo ao hospedeiro.
Mas, já que o ministro usou um conceito da biologia, podemos seguir nesta linha e fazer um paralelo entre o Estado e um organismo vivo, como o corpo humano, por exemplo, que, como todos sabem, funciona pela interação de diversos órgãos, organelas e outras estruturas. Dizer que os servidores são parasitas seria o mesmo que dizer que o sangue, o coração, o pulmão, o cérebro, o esqueleto e todos os órgãos vitais seriam parasitas do corpo humano. Sem os servidores, o Estado enfraquece, assim como o corpo morre quando seus órgãos não funcionam.
Em momentos de calamidades climáticas, incêndios, acidentes, tragédias e outros eventos deste tipo, é inegável a importância dos servidores públicos. Quem não lembra da ação dos bombeiros na tragédia de Brumadinho ou, agora, mais recentemente, da ação da defesa civil para atender às vítimas das enchentes em São Paulo? Além destas ações, que são claramente perceptíveis, há muitos servidores atuando, silenciosamente, para que não faltem recursos para financiar as políticas públicas, para garantir que os alimentos, os remédios e as bebidas que consumimos não nos causem danos, para que tenhamos nossos direitos protegidos, para que seja dado um destino adequado ao lixo que produzimos todos os dias, para que o saneamento básico das nossas cidades funcione, para garantir segurança no trânsito, para impedir a entrada de contrabando e de produtos que possam prejudicar a economia e para tantas e tantas outras coisas importantes que usamos todos os dias e nem percebemos que são garantidas por servidores públicos.
O Estado e a ação dos seus servidores são imprescindíveis para a imensa maioria da população brasileira. Mais de 80% das crianças estudam em escolas públicas e mais de 75% da população têm apenas o SUS como acesso à saúde. O ministro da Economia conhece muito bem estes dados. O fato é que ele não quer este tipo de Estado, que garanta a prestação dos serviços públicos de forma universal. Ele não quer um Estado que garanta Previdência social, educação e saúde para todos. Ele defende um Estado mínimo, privatizado ao máximo. Para o Estado dos sonhos do ministro da Economia, os servidores públicos são descartáveis. É por isso que ele insiste tanto em reduzir os quadros, rebaixar salários, quebrar a estabilidade, demitir servidores, terceirizar funções, etc.
O que precisa ficar muito claro é que o ataque contra os servidores públicos tem como objetivo central a redução do Estado e a fragilização da prestação dos serviços. Mais do que contra os servidores, trata-se de um ataque aos direitos sociais para melhorar o ambiente para negócios para o setor privado que ele representa.
Mas o ministro não erra quando diz que o Estado está sendo destruído por parasitas. Erra, maliciosamente, ao atribuir esta condição aos servidores. Aliás esta sua declaração, de que os servidores seriam parasitas do Estado, revela um entendimento distorcido sobre o papel do Estado, ou no mínimo, um entendimento desconectado da Constituição Federal.
Mas a sua declaração também pode ser interpretada como efeito de um mecanismo conhecido na psicologia como projeção, na qual os atributos pessoais próprios são atribuídos a outras pessoas. Há, sim, parasitas no Estado, destruindo por dentro sua força vital, e uma de suas estratégias é atacar os servidores públicos, pois são eles que constituem a maior resistência ao desmonte do Estado. Logo, ao atribuir aos servidores esta condição, o que se quer mesmo é deixar o espaço livre para os verdadeiros parasitas.
Setores inconformados com a natureza social do Estado brasileiro, inaugurada pela Constituição de 1988, nunca deixaram de ataca-lo, mas hoje eles ocupam posições privilegiadas nas estruturas públicas. O próprio ministro Paulo Guedes é representante direto do setor financeiro, ele próprio é um banqueiro, assim como vários outros agentes do governo são representantes de interesses privados claramente contrários ao Estado e ao serviço público, e adotam medidas flagrantemente favoráveis aos setores que representam, tendo como foco central a redução dos gastos públicos voltados à área social. Nem mesmo do ponto de vista econômico, estas medidas se justificam, pois a redução dos gastos públicos representa a desidratação do consumo das famílias que tem sido um dos pilares de sustentabilidade econômica do país há muito tempo.
A depreciação dos servidores públicos junto à população é parte da estratégia usada pelo governo para aprovar a PEC 186 (PEC emergencial) e a Reforma Administrativa, em vias de ser encaminhada ao Congresso Nacional. Para isso, o ministro e o próprio governo não têm qualquer escrúpulo em propagar inverdades, como a de que mais de 90% do orçamento serve apenas para pagar servidores, ou que os servidores têm reajustes todos os anos, que tiveram aumento acima da inflação, ou de que há excesso de servidores públicos no Brasil.
A verdade é que os gastos com todos os servidores públicos da União chegaram a 4,4% do PIB, que corresponde a aproximadamente 20% da arrecadação dos tributos federais. Dados do Ministério do Planejamento demonstram que este percentual é praticamente o mesmo de 2006 e é inferior ao que se gastava em 2002. Diferentemente do que afirma o ministro, os servidores não têm a garantia de reajustes salariais anuais e é por este motivo que as campanhas salariais dos servidores acabam sempre sendo resolvidas somente depois de longos períodos de greves e paralisações. Os reajustes anuais a que ele se refere são apenas acordos firmados com as categorias para reposição parcelada de perdas salariais. Além disso, de 2010 a 2019, estima-se que os servidores tiveram perdas salariais de mais de 30% em relação à inflação. A quantidade de servidores no Brasil representa apenas 1,6% da população, bem menos do que muitos países como Japão (5,9%), Coreia do Sul (7,6%), Alemanha (10,6%), Turquia (12,4%), Estados Unidos (15,3%), Reino Unido (16,4%), Canadá (18,2%) e França (21,4%), entre outros (OCDE e IBGE).
Não se iludam. Antes de acreditar no que tem sido propagado pelo governo em relação aos servidores, responda o seguinte: Quem ganha e quem perde com o enfraquecimento do serviço público? Quem ganha e quem perde com a redução do número de servidores públicos? Ainda que fossem verdadeiros os dados apresentados pelo ministro, e as receitas fossem mesmo insuficientes para financiar os serviços públicos na qualidade e na quantidade que queremos e necessitamos, por que continuamos não tributando as altas rendas e altas riquezas [1]? Por que concedemos tantas renúncias fiscais [2]? E por que não cobramos com eficácia os sonegadores contumazes [3]?
A resposta é muito simples: o que o governo pretende mesmo é reduzir o tamanho do Estado, a qualquer custo, diminuindo e precarizando a prestação dos serviços públicos essenciais para ampliar o espaço para os negócios do setor privado.
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[1] Desde 1995, por força da Lei 9.249, de 1995, os lucros e dividendos distribuídos ou remetidos ao exterior passaram a ser isentos do Imposto de Renda das Pessoas Físicas. Com isso, as altas rendas passaram a pagar menos tributos que as rendas médias e baixas.
[2] Em 2018, o volume de renúncias fiscais na esfera federal foi superior a R$ 300 bilhões.
[3] Estima-se que mais de 10% do PIB é sonegado todos os anos. Em dívida ativa, a União acumula um crédito superior a R$ 2 trilhões.
Dão Real Pereira dos Santos é diretor de Relações Institucionais do Instituto Justiça Fiscal e membro do coletivo Auditores Fiscais pela Democracia.