
A escolha de Maria Rita Kehl de colocar, a título de exemplo, uma “pessoa negra” no lugar de estar “agredindo uma criança” e ser interpelado “legitimamente” por uma pessoa branca, não é mera aleatoriedade. As posições sociais contidas nessa fala, escolhidas conscientemente ou não, são sintomas de uma estrutura argumentativa secular, racista, violenta e que reforça estereótipos. Defensores de Maria Rita Kehl denunciam “cancelamento” e “divisão social perigosa”. Quando não brancos falam por si, sempre soa perigoso para a branquitude acostumada a falar por eles. O referido cancelamento não é capaz de devolver um outro cancelamento secular ainda presente: o da humanização para pessoas não brancas, e que é produzido por estruturas de pensamento como o expressado por Maria Rita Kehl. Também não consegue esconder o fato da branquitude ser a produtora dos principais artefatos de violência identitária, através de conceitos como “raça”, “homem universal”, “civilização”, “modernidade” e “identitarismo” encobertos por um verniz de intelectualidade.
A ideia de “raça” é uma invenção da branquitude, onde a obra de Arthur de Gobineau (Ensaio sobre a Desigualdade das Raças) expressa muito bem essa infâmia: brancos seriam uma raça superior. Mesmo com a desconstrução pela própria ciência, por pessoas brancas da ciência inclusive, a ideia de raça continua estruturando a sociedade: raça no sentido social do termo. A racialização é antessala de uma forma de poder anterior e estruturadora do capitalismo moderno: o racismo. Não brancos estão na base da exploração capitalista. Não se trata de um argumento meramente moral, o racismo vai além pois define uma forma de ser e estar no mundo para corpos com identidades distintas: brancos em espaços privilegiados em detrimento de negros subalternizados e/ou eliminados. Qualquer estatística, regressão múltipla ou mensuração objetiva aceita pela ciência demonstra que não há aleatoriedade nessas posições.
Frantz Fanon (Os Condenados da Terra) aborda com precisão a lógica binária e de violência que opera no cerne do pensamento eurocêntrico, produtor de ideias como modernidade e homem universal. A definição de civilizado foi estruturada pela branquitude a partir daquilo que ela mesmo considera não civilizado. A mobilização da violência contra o não civilizado, seja pelo aparelho estatal ou não, é legitimada pela cruzada “civilizatória”, marcada pela invasão de territórios, estupros, sequestros e coisificação do mundo não branco. A violência por essa lógica não é suprimida como promete o discurso da modernidade. Ela também não é um resíduo indesejado, ela é a essência do projeto eurocêntrico uma vez que subalterniza e elimina a vida e a cultura dos não brancos. Partir de referências eurocêntricas, associadas a ideia de homem universal, além de não eliminar o racismo, reproduz sua lógica de forma mais sofisticada. A modernidade também é isso, um movimento identitário que constrói o lugar da branquitude a partir da eliminação de não brancos.
Douglas Barros, em seu recente livro (O que é Identitarismo?), ao examinar identitarismo demonstra o sentido desse conceito. Identitarismo é um amplo conjunto de políticas resultantes da lógica neoliberal, face a desconstrução da soberania dos estados e da identidade nacional. Tais fenômenos são consequência do processo de acumulação de riqueza do capital. A cola para gerir um mínimo de coesão social passou a ser a instrumentalização das identidades de grupos sociais. Identitarismo é gestão do poder constituído através de identidades sociais.
Quem divide e cancela, não são as identidades que se formam por si só na dinâmica social. O que divide a sociedade são quando os espaços de poder são estruturados na lógica de que uma identidade social deve existir a partir da eliminação/apagamento da outra, justamente o que faz a branquitude. Essa é a lógica do racismo, da racialização, que desembocam na naturalização de discursos de purificação como de Hitler e Trump. Fanon já alertava sobre isso, não há nada inusitado. A surpresa é da branquitude ao ver o verniz civilizatório se decompor e revelar apenas um pacto narcísico de poder, como nos ensina Cida Bento (Pacto Narcísico da Branquitude). Talvez um dia a ideia de raça não seja relevante para a vida em sociedade. Mas para chegar nesse lugar, é necessário dar espaços de poder e voz para que não brancos falem de si mesmo. A branquitude deve falar de racismo, não pelos não brancos, mas a partir de sua própria posição nessa relação: a de privilégio.
*Filipe Costa Leiria é Doutor em Políticas Públicas –UFRGS e Auditor de Controle Externo do TCE-RS