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O Etos da Financeirização

Escrito por Filipe Leiria* para Rede Estação Democracia (RED)19 de Jul de 2024 às 09:22
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Ilustração: paykiwifay.com.br.
 
 

Para se compreender como se produz riqueza atualmente, como as políticas públicas vêm se estabelecendo cada vez mais associadas ao setor financeiro da economia, as razões do superendividamento da população, dentre outros, o recente livro Financeirização: crise, estagnação e desigualdade é uma obra fundamental.  O livro reúne um conjunto de autores que sistematizam de forma didática como se construiu uma lógica onde o setor financeiro foi ao mesmo tempo se autonomizando da economia real e criando vida própria. A ponto de criar paralelamente constantemente novos mecanismos financeiros representativos que enxugam riqueza da economia real. Em outros termos, como a renda oriunda de ativos representativos foi tendo preponderância em relação à renda oriunda de ativos reais.

O tema é instigante e transcende o campo da economia. Permite-nos refletir sobre a possibilidade da financeirização representar um novo etos da sociedade moderna. Certamente mais perverso para quem vive do trabalho e para os mais destituídos, contrastando com o reduzidíssimo grupo de favorecidos. Um novo conjunto de hábitos, costumes, práticas, comportamentos, cultura etc. Um fenômeno que vem se inserindo em diversos campos. Estão aí os discursos de “independência financeira” como a promessa de um estilo de vida que prescinda do trabalho, mesmo que não se tenha maiores capitais. As representações do setor financeiro como um espaço de poder, sucesso, tomado como essencial para o mundo funcionar. Além disso, a financeirização é um terreno fértil para a meritocracia calcado em um hiper individualismo, tão irreal quanto conveniente aos interesses do grande capital. Uma lógica que aliena do debate público a importância do trabalho, o capital produtivo e a dimensão coletiva da vida em sociedade.

Compreender o processo de financeirização, talvez, seja a chave para acompanhar aspectos cotidianos da vida, que por vezes podem não fazer muito sentido em um primeiro olhar. As surradas frases dos telejornais “o mercado elevou as expectativas das de juros…. o grau de risco…” pode nos parecer distante se não exploramos os sentidos semânticos que podem ter. De onde veio essa dependência do mercado? Se, por exemplo, entendermos que moeda virou uma mercadoria (a mais demandada das mercadorias), que os juros viraram o preço dessa mercadoria e o sistema que regula a disponibilidade de moeda para população é dominado pelos interesses de faturar em cima da a escassez, a frase do noticiário pode ganhar outro sentido. Uma profecia autorrealizável: vai piorar, porque vou fazer piorar.

Como grandes grupos financeiros foram parar na educação pública, nas companhias de energia, nas empresas públicas de saneamento a ponto de apagar as fronteiras entre setor público e privado, com verdadeiras portas giratórias entre burocrata, o processo de pauperização da maioria da população, são outros aspectos da vida cotidiana que a financeirização pode trazer elementos explicativos.

Enfim, a financeirização é um tema que não se esgota em si. Além disso, impõem superar barreiras de raciocínios abstratos onde muitas vezes a capacidade de explicabilidade pode ficar comprometida. Não é o que acontece no livro. Isso porque a qualidade elevada dos artigos permite a plena apropriação dos aspectos complexos que caracterizam a financeirização. Popularizar conceitos associados aos fenômenos que influenciam nossas vidas, talvez seja o primeiro passo para superar suas mazelas e contradições e isso o livro Financeirização: crise, estagnação e desigualdade faz muito bem tornando-se extremamente necessário.

* Doutor em Políticas Públicas pela UFRGS, Auditor de Controle Externo do TCE-RS
 

   

 

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