O rápido crescimento da dívida pública em 2020, em função dos maiores gastos públicos para enfrentar os impactos da pandemia do coronavírus, trouxe consigo o debate sobre como realizar ajuste fiscal de forma equitativa e legítima.
Recorrentemente, a pauta de soluções tem recaído sobre corte de despesas primárias: mais do mesmo. Há, contudo, outras alternativas possíveis, que são centrais caso se queira íntegra e efetivamente debater finanças públicas.
Como o Estado é um imenso arrecadador de renda privada e faz tal arrecadação para realizar políticas públicas onerosas (sanitárias, educacionais, creditícias, previdenciárias, assistenciais, agrícolas etc.) suas finanças são necessariamente redistribuidoras de renda.
Logo, é impossível dissociar as finanças públicas do debate sobre a distribuição de renda, o que ilumina quem ganha e quem perde com os diferentes tipos propostos de ajuste fiscal. Por isso a controvérsia deve ser pautada em sua origem constitucional: quais direitos podem ou não podem ser adiados ou reduzidos? Como distribuir o custo da ação estatal de forma equitativa na sociedade brasileira?
Gastos primários são todas as despesas não financeiras, donde são excluídos juros e amortizações da dívida pública. Ações e serviços públicos de assistência e previdência sociais, segurança, educação e saúde concentram a maior parte desses dispêndios.
Como médicos, enfermeiros, professores, policiais, não são robôs, o gasto primário com pessoal é elevado, pois é assim que se oferta serviço público. Por sinal, o gasto com pessoal tem limites dados pela Lei de Responsabilidade Fiscal. A existência de privilégios orçamentários e burlas interpretativas nos gastos com pessoal precisa de correção. Mas que não se confunda a criança com a água suja, jogando ambos fora.
Perceba-se: o Brasil é um país marcado pela desigualdade. Não são necessários dados. Olhe-se para o lado e se perceberá a agressiva diferença de condições de vida que nos marca como sociedade.
A Constituição de 1988 busca, se não resolver, minimizar a desigualdade. Seu intuito é equalizar resistentes distorções vindas do passado escravocrata, que ainda se inscrevem e se reproduzem em uma espécie de orçamento de castas em todos os entes da federação. Por isso, ela dirige o Brasil progressivamente rumo ao bem-estar social, com oferta universal de determinados serviços públicos essenciais.
Afirmar a existência de direitos sociais e obrigar o Estado à sua oferta universal são escolhas constitucionais que significam um pacto civilizatório em direção a uma maior igualdade. É verdade que sempre cabe melhorar a qualidade do serviço.
Mas, antes de se atacar tal qualidade, lembre-se de que um país desigual significa uma vasta camada populacional sem condições de buscar serviços outros que não os públicos. Logo, a demanda por eles é alta. Isso quer dizer que a necessidade de gastos primários é alta não porque o Brasil seja gastador, mas tão somente porque é extremamente desigual.
Daí decorre a pergunta constitucionalmente adequada: como custear tais serviços públicos essenciais e ainda promover um ajuste fiscal que não aumente a desigualdade?
Um exemplo de iniquidade fiscal reside na incapacidade e insuficiência de controle sobre subsídios e desonerações. Por justiça, saliente-se que talvez aqui incida um dos poucos gatilhos interessantes do Teto de Gastos e das propostas de emendas constitucionais que servem para os acionar. Contudo, os gatilhos visam manter o Teto, que é um problema em si, como logo falaremos.
A rigor, desonerações não são, por si sós, problemáticas. Porém, não se pode admitir sua concessão por prazo indeterminado e sem avaliação periódica quanto às contrapartidas prometidas e às respectivas medidas compensatórias, como tanto ocorre. É inadequado que os gastos tributários sejam concedidos e mantidos sem que se afira se os ganhos sociais são superiores ao custo público de mantê-los.
Embora muito se esqueça, finanças públicas envolvem tributação. No desigual Brasil, a iniquidade também se revela no sistema tributário. Ora, quem menos paga tributo no país são os mais ricos. Logo, além de simplificar o sistema tributário, tornando-o mais eficiente e, assim, fazendo-o menos custoso à estrutura produtiva, é fundamental que sua reforma o torne progressivo. Aliás, a reforma tributária não precisa ser neutra. Ela pode admitir aumento global de carga, sobretudo sobre quem mais tem condição de arcar.
Se, em 1988, este país pactuou a construção de um estado de bem-estar social, é preciso custeá-lo. Se o Brasil é tão desigual a ponto de muito se demandar serviço público, o custo de o financiar é preço do enfrentamento da desigualdade. Há 520 anos o mercado não resolve – espontânea e privadamente – a desigualdade no país. É demais achar que ele a resolverá agora sozinho. Caso se queira realmente minimizar a desigualdade, o preço para tanto deverá ser pago.
Equidade fiscal passa pela clara compreensão de que quem tem mais, precisa pagar mais. Essa compreensão precisa ser vista como parte da pauta sobre como resolver a obscena distância entres ricos e pobres no orçamento público brasileiro. A desigualdade é problema de ambos, pois é do Brasil, a que tais ricos e pobres pertencem e formam.
Que fique claro, pois o binarismo intelectual obsta o progresso do país: não se fala aqui de subir a carga tributária para se aumentarem gastos primários por populismo, mas para a marcha civilizatória do país pactuada na Constituição de 1988. Certamente, lutar pela inclusão social por meio das finanças públicas é melhor do que acatar o esgarçamento do tecido social, cada vez mais ocupado por milícias, tráfico e outras formas de violência que são, em boa parte, expressão da extrema desigualdade nacional.
Há mais a fazer além da redução de desonerações e de uma reforma tributária não neutra. É preciso se entender melhor porque este país possui uma política monetária tão díspar, com tanta operação compromissada no balanço do Banco Central. Dados mostram que países em desenvolvimento com elevadas reservas internacionais, como Rússia e México, possuem cenário diverso nas operações de mercado aberto de seus bancos centrais (que correspondem às compromissadas por aqui).
Em junho de 2018, 50% do ativo do Banco Central do Brasil eram reservas internacionais (US$ 376,7 bilhões em dezembro de 2018) e as operações de mercado aberto eram também 50% do passivo monetário, o que equivalia a 17% do PIB. Em junho de 2018, o Banco Central do México tinha aproximadamente 90% de seu ativo como reservas internacionais (US$ 176,3 bilhões em dezembro de 2018) e 30% de seu passivo como operações de mercado aberto, 5,2% do PIB. Por sua vez, por volta de 90% do ativo do Banco Central da Rússia eram reservas internacionais em junho de 2018 (US$ 468,6 bilhões, em dezembro de 2018) e em seu passivo aproximadamente 20% eram operações de mercado aberto, valor próximo a 6,5% do PIB.
O tamanho das compromissadas no país é um puzzle. Pode ser ainda resquício do período da alta inflação, pode ser um sistema financeiro extremamente líquido, pode ser o perfil convencional curto-prazista do investidor brasileiro, pode ser o pouco uso de operações definitivas do Banco Central, pode ser um pouco disso tudo. Mas, vindo dessa montanha de compromissadas, há gasto financeiro da União. Como todo gasto é renda, os poucos agentes que acessam tal circuito financeiro, obviamente os mais ricos, ganham. Assim, a desigualdade por via dos gastos públicos, nesse caso financeiros, reproduz-se.
É necessário ajuste fiscal, gradual, transparente, com racionalidade compreensível à sociedade, para que haja legitimidade e equidade na equação entre receitas e despesas, cuja expressão intertemporal é refletida na dívida pública. Isso conduz expectativas de toda a sociedade, mais do que apenas as do mercado financeiro. Ampliar a compreensão do senso comum acerca da equidade fiscal contribui para o bom andamento da política econômica e, claro, para o prêmio de risco convencionado contra a dívida pública.
Porém, ajuste fiscal e credibilidade não podem ser associados tão somente ao Teto de Gastos. O Teto foi uma opção de ajuste sobre o lado mais fácil da equação: as despesas primárias. Mas estas custeiam os serviços públicos e garantem a consecução de direitos fundamentais neste país, fruto da vontade civilizatória da Constituição de 1988.
O Teto não toca na regressividade do sistema tributário, que certamente não favorece os pobres. Ele não controla o fomento ao mercado por meio de subsídios e incentivos tributários a determinados grupos empresariais. Ele não afeta as despesas financeiras, como as incorridas, por exemplo, com as operações compromissadas. Diferentemente disso: ele constrange a capacidade estatal de manter estradas, ampliar ações e serviços de saúde, estruturar universidades federais que correspondem a 70% dos melhores cursos superiores do Brasil etc.
A manutenção do Teto e a aparente impossibilidade de o substituir por regra fiscal melhor significa que qualquer outra reforma fiscal de nada servirá para o esforço intertemporal de construção mais equitativa deste país: gastos primários serão limitados pelo Teto independentemente, por exemplo, de uma maior arrecadação tributária.
No fundo, o Teto é um grande limitador do pacto civilizatório desejado pela Constituição de 1988. É falso que a Constituição não caiba no orçamento. Tal falácia apenas se presta a ocultar a verdade de que não se quer pagar, de acordo com o que se pode, por ela.
Assim o é justamente porque os mais agraciados pelos privilégios tributários e despesas financeiras do Estado não são os pobres, mas os ricos que tudo fazem para que tudo continue exatamente do mesmo modo como tem sido desde sempre, em uma espécie de escravagismo fiscal. Por isso o ajuste não é via reforma tributária ou por meio de melhor coordenação entre Tesouro e Banco Central, mas apenas e tão somente sobre as despesas primárias.
Muitos economistas e operadores do direito acabam não dando a devida atenção a isso. Ao elegerem o Teto como um fim em si mesmo, esvaziam em termos fiscais os compromissos constitucionais com a dignidade da pessoa humana. Assim, patrocinam um ajuste sobre a marcha civilizatória brasileira justamente por acharem que será com ajuste fiscal, e não com justiça fiscal, que ela acontecerá.
Reduzir a ação estatal para contê-la ao limite do Teto é inverter a relação entre Constituição e orçamento público. Não se pode cumprir o pacto social de 1988 negando-lhe os meios fiscalmente necessários para tanto.
Ajuste fiscal equitativo e legítimo deve, pois, ir além do controle apenas sobre despesas primárias, enfrentando as opacas e regressivas opções tributárias, bem como definindo balizas para as ilimitadas despesas financeiras. O risco que corremos, caso não o façamos, é o de repetirmos o passado incivilizado, a pretexto de responsabilidade fiscal enviesada a uma única solução, enquanto seguimos constitucionalmente irresponsáveis.