Apesar de uma oferta educacional mais abrangente e com alcance em diversos polos regionais do Estado, os municípios ainda são carentes de profissionais qualificados, principalmente nas cidades pequenas. Esse é o alerta do professor em Administração Pública Sandro Bergue, que já atuou na Escola Nacional de Administração Pública e na Escola Superior de Gestão e Controle do Tribunal de Contas (TCE).
Mais do que a corrupção, os municípios deixam escapar recursos, que já são mais escassos diante do excesso de atribuições das prefeituras, pelos "processos de trabalho deficientes, na burocracia excessiva, na falta da capacidade de utilizar os potenciais das pessoas", acredita, e por gestores municipais sem competência técnica, mas sobretudo política. "'Gestão' acaba sendo um nome mágico. A administração pública não é como uma empresa, há múltiplos interesses, e, muitas vezes, antagônicos, mas legítimos", diz, pontuando que "quem ocupa esses cargos precisa ter sensibilidade, entender a sociedade, e articular com outros atores".
Nesta entrevista ao Jornal do Comércio, Bergue também fez críticas ao atual modelo de avaliação de desempenho de profissionais no setor público, tema atualmente em discussão no Senado Federal. Para o professor, o regramento "não serve para nada do ponto de vista prático". Bergue acha que o julgamento do trabalho do servidor "deveria ser baseado na seguinte reflexão: nós fazemos avaliação de desempenho para melhorar o nosso desempenho. Não é para pagar mais ou punir mais a pessoa", acredita.
Jornal do Comércio - Os pequenos municípios brasileiros têm a capacidade de cumprir todos os compromissos de prestação de informações e requisitos legais para obtenção de recursos?
Sandro Bergue - Hoje não têm, mas eles, com certeza, podem ter. No Brasil, mesmo municípios de pequeno porte tem uma heterogeneidade muito grande, são muito díspares. De modo geral, esses municípios têm uma estrutura administrativa bastante enxuta em termos de administração burocrática. Nós temos hoje uma oferta muito maior de profissionais de Ensino Superior. Hoje, é inadmissível nós levantarmos a ideia de que os municípios são carentes de profissionais, mas a forma de atrair os servidores para a administração pública é um desafio para ser superado.
JC - Mas quais são os principais problemas que a falta de uma melhor qualificação traz aos municípios? Tem muitos casos de improbidade, irregularidades... O que enseja esse tipo de situação?
Bergue - Há uma parcela de dinheiro público que é desperdiçada em corrupção, mas é uma parcela menor, por incrível que pareça, mais ainda quando falamos de município de pequeno porte. O principal desperdício está nos processos de trabalho deficientes, na burocracia excessiva, na falta da capacidade de utilizar os potenciais das pessoas que têm hoje nos municípios. Como eles têm uma despesa muito grande, e uma dificuldade muito grande de comprimir essa despesa, essa equação fiscal nos municípios é um desafio para os gestores, o que deixa pouca margem para arriscar em aventuras em termos de administração.
JC - Os municípios acumulam cada vez mais atribuições, transferidas pelos estados e pela União, sem que haja a contrapartida dos recursos, que continuam centralizados. Isso gera sobrecarga?
Bergue - Estão sobrecarregados. Esse é um debate de longa data, tem décadas, o chamado pacto federativo, essa equação federativa, que tem a ver com uma série de dimensões. O fato é que os municípios hoje são vistos, a partir de Brasília, como operadores das políticas públicas, enquanto os formuladores estão no Governo Central. Isso recai realmente sobre os ombros dos prefeitos. Essa parcela de recursos está muito aquém do que seria necessário. Me parece fazer parte de uma estratégia de controle dos municípios. Mas existe espaço nos municípios para racionalização, utilização de recursos, sobretudo humanos, que estão ali alocados e precisam ser de forma criativa, inovadora, rearranjados para produzir serviços públicos de maior qualidade. Nós temos hoje várias instituições, sobretudo universidades, que se aproximam dos municípios e que têm esse propósito, entender e capacitar agentes públicos, sejam servidores públicos, para melhor entender esse trabalho.
JC - Nosso modelo federativo, da Constituição de 1988, considera o município como entidade federativa autônoma. O que essa divisão "igualitária" traz de desvantagens aos pequenos municípios?
Bergue - Por óbvio a dimensão econômica e a capacidade produtiva dos municípios, a localização, afetam essa distribuição toda de poder, de status. Em que pese que sejam formalmente iguais, São Paulo é uma distorção absoluta porque é o terceiro orçamento do Brasil. E 80% dos municípios do Rio Grande do Sul são pequenos, e têm bem pouco poder político. Temos poucas pessoas qualificadas também em termos de capacidade argumentativa, capacidade política, na administração desses municípios, que acaba impactando na capacidade deles de argumentar, de pleitear politicamente.
JC - Qual seria o modelo mais justo para diminuir essas distorções e diminuir a necessidade dos prefeitos de "passar o pires"?
Bergue - O município, porque está próximo da sociedade, precisaria ter um poder maior, uma representatividade maior. Mas também é realidade que o município ainda não está preparado para isso. Eu, honestamente, tenho alguma dúvida de que se nós ampliássemos a capacidade financeira dos municípios, isso repercutiria numa proporcional qualidade ou aumento dessa qualidade dos serviços públicos. Não por má-fé dos administradores, mas em maior grau por falta de capacidade administrativa dos municípios.
JC - O quanto essa deficiência no âmbito das prefeituras dá ensejo à prática de abusos e irregularidades nos pequenos municípios?
Bergue - Eu costumo dizer que tem três componentes no gestor público médio municipal hoje. O primeiro é a boa intenção. O gestor médio municipal quer fazer alguma coisa para o município. Há um segundo vértice desse triângulo, que é o da competência política, e um terceiro, da competência técnica. Essa boa intenção, em via de regra, está presente, a competência política nem sempre. Essa capacidade de visão estratégica, de ler o ambiente, de enfrentar as principais necessidades. E a capacidade técnica é entender esse conjunto de regras, de normas, de atores de controle que incidem sobre a administração pública, e entender como funciona a burocracia local, como funcionam as regras locais, esses dois vértices das competências política e técnica, muito mais essa última, é bastante deficitária no gestor médio. Quando esses três vértices desse triângulo são frágeis, dá espaço para toda a sorte de irregularidades, de desvios, ainda que sem intenção de fazê-lo, o não cumprimento de questões e aspectos legais, sejam leis de transparência e de acesso à informação, concursos públicos, enfim. Há uma série de possibilidade de incidências de falhas e desvios, ainda que não intencionais e sem propósito de produzir corrupção, isso acontece, e muitos recursos públicos se esvaem.
JC - E a meritocracia no serviço público? Isso pode efetivamente estimular uma melhoria na qualificação de servidores e, consequentemente, na qualidade dos serviços?
Bergue - Dos anos 1970 para cá tivemos, no nível federal, vários movimentos de introdução da meritocracia, da gestão da avaliação do desempenho, e nenhum deles gerou nenhum resultado positivo. Na Emenda Constitucional 19/1998, que fará 20 anos, foi introduzida a avaliação permanente de desempenho dos servidores, mas não avançamos substantivamente nisso. Formalmente, criamos vários mecanismos nos diferentes órgãos da administração pública nos três níveis, uma lei que institui, os formulários, mas não serve para nada do ponto de vista prático. O que falta é a vontade de avaliar e a vontade de ser avaliado. O primeiro aspecto é que não temos uma ideologia e valores meritocráticos.
JC - Na prática, isso é seletivo? Funciona como ferramenta de retaliação e ameaça?
Bergue - Acaba gerando esse tipo de situação. Mas isso não é da administração pública. Isso é, de forma geral, na nossa cultura. Então faz com que toda forma de avaliação de desempenho que leve a hierarquizações, com "primeiro tu, depois eu, depois ele", não soe bem para nós, tanto para quem avalia quanto para quem é avaliado. O segundo aspecto fundamental para que essa avaliação de desempenho até hoje não tenha decolado: nós associamos a avaliação de desempenho à remuneração. Todas as vezes em que se fez isso, que dependendo da avaliação se vai ganhar mais ou menos, os processos de avaliação de desempenho caíram no formalismo, porque é para inglês ver, e eu não vou te prejudicar. Eu hoje sou teu chefe, amanhã você é a minha chefe, não vou criar antagonismo contigo.
JC - Mas então as avaliações deveriam ser baseadas no ganho financeiro ou na perda do benefício?
Bergue - Não. Deveria ser baseado na seguinte reflexão: nós fazemos avaliação de desempenho para melhorar o nosso desempenho. Isso é o propósito da gestão do desempenho, nós pactuamos um trabalho, planejamos, executamos e avaliamos com o propósito de num próximo ciclo melhorar. É por isso que temos que fazer gestão do desempenho, não é para pagar mais ou punir mais a pessoa. O desenvolvimento deveria ser o principal. E o que é grave ainda, para tocarmos nesses pontos, temos hoje uma geração que está entrando nas instituições públicas, uma geração mais jovem que quer ser avaliada, que gostaria de mostrar que é melhor, mas entra num circuito viciado e praticamos aquilo que se chamaria de um "talentocídio", matamos os talentos, matamos o cara que quer mostrar mais, que quer ser avaliado e tem uma cultura meritocrática mais desenvolvida.
JC - Em 2016, muitos prefeitos foram eleitos com o discurso de que não eram "políticos" e sim, gestores, e que estão diminuindo a estrutura estatal, extinguindo secretarias e autarquias e terceirizando serviços. Até que ponto isso funciona, e partir de onde deixa de beneficiar o município?
Bergue - Redução de secretarias, de processos, há espaço para isso em qualquer administração. Mas o grande problema de fazer esses cortes e fusões de secretarias é fazer sem projeto, que não raras vezes é o que acontece. Aí entro na administração, não sei como funciona, ela tem 30 secretarias, mas quero transformar em 15. Mas qual o projeto de reduzir de 30 para 15? Quais são as áreas? Na maioria das vezes isso acontece ao longo do funcionamento do processo quando as premissas já estão dadas. São 15, então tem que escolher as 15. São uma série de questões que acabam gerando problemas no percurso do processo de enxugamento.
JC - A ideia do gestor é necessariamente melhor que a do político?
Bergue - "Gestão" acaba sendo um nome mágico. Isso é um problema muito grave, acreditar nele, e propagar esse discurso. Quando o sujeito reduz de 30 secretarias para 15, ele imagina que vai usar menos o aparelho administrativo como um mecanismo de troca com o Parlamento. Isso é um outro problemão, porque quem ocupa esses cargos em geral precisa ter competência política. Sensibilidade, entender a sociedade, articular com outros atores, e nem sempre um técnico tem isso. A administração política não é como uma empresa, há múltiplos interesses, e muitas vezes antagônicos, mas legítimos. Há o empresário que quer produzir, o ambientalista que não quer utilizar aquilo ali. Ambos são legítimos. E eu tenho que fazer com que essas pessoas conversem, fazer uma lei que dê conta desses dois. Como faço isso? Negociando, conversando, articulando, me valendo de informações técnicas, isso é competência política.