Leio em colunas e comentários econômicos exasperadas avaliações que clamam pela elevação do superávit primário. Sem isso, o crescimento da economia está irremediavelmente comprometido.
Em suas habituais diatribes contra os turrões da ortodoxia, Paul Krugman distribui generosas cacetadas nos adeptos da austeridade. O colunista do New York Times e da CartaCapital questiona os "austeros" que equiparam o problema da dívida pública aos problemas da dívida de uma família. Se uma família acumulou dívidas demais, deve "apertar os cintos".
Os governos não devem fazer o mesmo? A resposta de Krugman: uma economia não é uma família endividada. "Nossa dívida (privada) consiste principalmente de dinheiro que devemos uns aos outros. Ainda mais importante, nossa renda provém principalmente de vender coisas uns aos outros. Seu gasto é minha renda e meu gasto é sua renda. Assim, o que acontece se todo mundo reduzir gastos simultaneamente a fim de reduzir suas dívidas? Resposta: a renda cai."
Quando se trata de cuidar do funcionamento da economia como um todo, ou seja, de questões ditas macroeconômicas, os vícios do senso comum e da microcefalia individualista levam a recomendações suicidas de política econômica, como as oferecidas por Angela Merkel & Cia. para a desditada Europa.
As trapalhadas começam com a definição da chamada macroeconomia como "a economia dos agregados". Nessa visão apologética, a "agregação" dos comportamentos individuais racionais, a soma das partes determina o resultado para o conjunto da economia. Não por acaso, os economistas da corrente principal se empenham com denodo na descoberta dos fundamentos microeconômicos da macroeconomia, assim como os alquimistas buscavam apedra filosofal. Essa proeza intelectual pretende convencer os incautos de que o movimento do "macro" é resultado da agregação das decisões no âmbito "micro".
Keynes, o fundador da macroeconomia, escreve nos manuscritos preparatórios da Teoria Geral de 1933 que a Economia Monetária da Produção funciona segundo um "circuito sistêmico" que começa com dinheiro para contratar trabalhadores e meios de produção, terminando com a venda das mercadorias produzidas por dinheiro. Dinheiro-Mercadoria-Mais Dinheiro, segundo Keynes, é o circuito da Economia Empresarial, conceito que ele utiliza para se desvencilhar das armadilhas lógicas que infestam a ortodoxia. Isso tem um triplo sentido: 1. A propriedade das empresas e o acesso ao crédito conferem à classe empresarial a prerrogativa de gastar acima de sua renda (lucros) corrente. 2. As decisões de gasto na produção corrente e na formação de nova capacidade (investimento) criam a renda nominal da economia como um todo, mediante o pagamento dos salários e geração de lucros sob a forma monetária. 3. A "criação" da renda e do lucro sustenta os gastos de consumo e de poupanças das famílias. As poupanças encarnam-se em reinvindicações genéricas à riqueza e à renda futura. Constituem a massa de ativos financeiros gerados pelo rastro de dívidas e pelos direitos de propriedade que "financiaram" o dispêndio de investimento e de consumo.
Contemporaneamente a Keynes, o economista polonês Michael Kalecki valeu-se dos esquemas de reprodução de Marx para formular o princípio da demanda efetiva. Kalecki investiga as condições de reprodução da economia composta de três macrodepartamentos: bens de consumo dos trabalhadores, bens de produção e bens de consumo dos capitalistas.
Assim, ao comentar a equação "Lucros brutos = Investimento bruto + Consumo dos capitalistas", Kalecki pergunta-se sobre o seu sentido: "Significa ela, por acaso, que os lucros, em um dado período, determinam o consumo e o investimento dos capitalistas, ou o inverso, disso? A resposta a essa questão depende de se determinar qual desses itens está sujeito diretamente às decisões dos capitalistas. Fica claro, pois, que os capitalistas podem decidir consumir e investir mais em um dado período do que no precedente. Mas eles não podem decidir ganhar mais. São, portanto, suas decisões de investimento e consumo que determinam os lucros e não vice-versa".
As análises de Keynes e de Kalecki podem ser aplicadas às decisões de gasto do governo. As autoridades podem decidir gastar mais ou menos, mas não podem determinar o resultado fiscal. Déficits ou superávits vão depender da resposta do setor privado ao estímulo do gasto público. Se o governo corta o gasto em uma conjuntura de desalavancagem do setor privado - empresas e famílias -, a queda da renda "agregada" vai inexoravelmente levar a uma trajetória perversa dos déficits e das dívidas públicas e privadas, com efeitos indesejáveis sobre os bancos financiadores. Essas são as lições da crise europeia.