"Como é que nós vamos fazer o país daqui a dez anos? Essa discussão não existe. A única discussão que se faz é: olha, equilibramos o orçamento, ou não? Onde é que nós vamos cortar? Como se fosse uma coisa mágica: desde que a gente equilibre o orçamento fiscal, os investimentos aparecerão e o país vai crescer. Olha, isso claramente não é verdade. Isso é um pensamento mágico." André Lara Resende
O envio do projeto de lei orçamentária para 2021 será feito nos próximos dias em todos os entes da federação. Certamente envolverá uma espécie de justiça fiscal de transição, diante do acúmulo de mortes evitáveis que temos visto ao longo de 2020, por força de uma errática, insuficiente e lenta resposta estatal à pandemia da Covid-19.
A superação da trágica marca de 100 mil mortes implica, no mínimo, a incidência do regime de responsabilidade objetiva a que se refere o art. 37, §6º da Constituição, por força das incontestáveis ações e omissões estatais que concorreram para o aludido resultado. Eis o contexto em que o conceito de “justiça de transição” merece ser invocado para pautar a necessidade de reparação coletiva e intergeracional até mesmo para superar os alegados limites fiscais trazidos pelo teto de despesas primárias.
Ideal seria considerarmos as mortes acumuladas durante a pandemia com a mesma higidez normativa e seriedade analítica como são tratados, por exemplo, as metas e os riscos fiscais que indicam a sustentabilidade da dívida pública. Essa é a razão pela qual proponho falarmos em déficit de 100 mil vidas perdidas para a Covid-19 por inépcia estatal.
A provocação de André Lara Resende que serve de epígrafe deste artigo nos permite contraditar o fetiche do orçamento equilibrado com o reposicionamento da pergunta sobre "onde vamos cortar" em outro patamar: quantas vidas podemos cortar impunemente para contermos a dívida pública? Não há "pensamento mágico" na economia que possa ser colocado à frente do dever de preservação das vidas humanas.
Assim ressituado o balanço entre variáveis jurídico-econômicas, precisamos claramente assumir que o atual déficit de 100 mil vidas perdidas impõe, nesta quadra da nossa experiência constitucional, um sério e honesto esforço de justiça de transição. Trata-se de instituto usualmente aplicado na responsabilização dos crimes cometidos por ditaduras, em esforço de desvendamento da verdade histórica e durante o processo de restauração de regimes democráticos. Sua finalidade estrutural é a reparação a direitos humanos lesados em larga escala por ações e omissões governamentais.
Trazer a busca por uma transição justa para o presente momento fiscal brasileiro é ousadia teórica que se justifica para refutar as teses de que (1) a Constituição de 1988 não caberia no orçamento público e (2) seria necessário negar-lhe eficácia orçamentário-financeira em nome de uma reducionista concepção de responsabilidade fiscal que foi inscrita no Ato das Disposições Constitucionais Transitórias pela Emenda 95/2016.
Essa é uma pauta urgente, na medida em que antevemos o risco de que o teto de despesas primárias imponha — direta ou indiretamente — a completa paralisação de serviços públicos essenciais já no texto do PLOA/2021, dada a repercussão federativa dos gastos da União para o custeio de tais serviços, a exemplo do que se sucede no SUS.
Ao pressupormos que a calamidade pública reconhecida pelo Congresso Nacional (na forma do Decreto Legislativo nº 6/2020) supostamente findará no final deste ano e nada fizermos para mudar o ordenamento atualmente vigente, o teto se imporá como fronteira do “pensamento mágico” em 2021, ainda que isso custe outras milhares de mortes evitáveis.
Segundo Martin Sandbu, comentarista de economia do Financial Times, o mundo passa por uma profunda transição na interpretação das regras fiscais, em artigo disponível aqui. Ao invés de "responsabilidade fiscal" para reduzir carga tributária e formar superávits primários em favor tão somente dos credores da dívida pública, seria preciso ampliar a tributação e a própria dívida pública em favor também do bem-estar social e ambiental.
Aludido comentarista nos conclama à reflexão sobre os danos causados pela ortodoxia fiscal, já que ela não é politicamente neutra e beneficia primordialmente os credores de liquidez e do rentismo, em detrimento dos serviços públicos e dos trabalhadores precarizados. Trata-se de uma fissura profunda em conceitos e princípios fiscais que orientavam o consenso normativo-econômico mundial desde a década de 1970.
Como se pode ler na versão traduzida pela Folha de S.Paulo, o alerta de Martin Sandbu, em síntese, é o seguinte:
“Tenha em mente que interesses são servidos pelas ideias prevalecentes sobre responsabilidade fiscal. Durante muito tempo houve a convicção de que a captação pública bloqueia o investimento privado, ao tornar os financiamentos mais caros para o setor privado. Impostos mais altos, naturalmente, eram vistos como redutores da lucratividade das empresas privadas.
A velha ortodoxia, em outras palavras, convinha às pessoas dotadas de ativos generosos e àquelas que desfrutavam de renda porque eram donas ou controladoras de capitais. O poder desses interesses – em termos de definir as ideias reinantes sobre o que deve ser encarado como política séria, assim como também em forma de lobby direto – pode ser visto na resposta da maioria dos países ao salto anterior da dívida pública causado pela crise financeira mundial. A ortodoxia fiscal estava por trás do esforço para reduzir os gastos públicos em muitos países.
É muito mais difícil imaginar cortes significativos nos orçamentos públicos hoje. Em parte porque os danos do passado agora são visíveis, e justificar novos danos se tornou muito mais difícil. Em parte porque a pandemia mesma concentra as atenções nos serviços públicos inadequados e em outros trabalhadores essenciais mal pagos. Muito mais do que há uma década, os buracos nos orçamentos agora terão de ser cobertos por aumentos de impostos.
Não existe motivo para esperar que os beneficiários da “responsabilidade fiscal” do passado abandonem a luta em defesa de seus interesses. Se aumentos de impostos significativos forem de fato inevitáveis, a luta passará a ser travada em torno de definir sobre quem incidirá o peso da tributação: que impostos devem subir, e por quanto. Essa deve ser a mais feroz batalha de política econômica, se e quando retornarmos a alguma aparência de normalidade.”
No Brasil, o conflito de teses interpretativas também está posto para debate entre nós. De um lado, há os que defendem, como "âncora fiscal" em 2021, a retomada da plena vigência do teto previsto pela Emenda 95/2016. Para esses, o "Novo Regime Fiscal" é um fim em si mesmo e, caso fosse seguido dogmaticamente, traria a retomada do cenário projetado anteriormente para as contas públicas. Volta ao passado de "normalidade" do ajuste fiscal é o que alguns esperam de forma quase automática (quiçá inercialmente). Ocorre, contudo, que aludida promessa de austeridade incidente apenas sobre as despesas primárias, como bem denuncia André Lara Resende, não passa de frágil e equivocado "pensamento mágico" sobre o processo de desenvolvimento econômico.
Por outro lado, há quem busque brechas parciais e artifícios ardilosos para ampliar a capacidade de ação governamental em face da altamente provável persistência dos efeitos da calamidade pública no próximo exercício financeiro. Assim manobras obtusas e inconstitucionais começaram a ser aventadas em relação ao manejo de créditos extraordinários fora das hipóteses de imprevisibilidade e urgência1, tanto quanto foram propostas burlas ao teto por meio do Fundeb2 com a tentativa de inclusão de gastos assistenciais nas atividades de manutenção e desenvolvimento do ensino.
A bem da verdade, manter o teto a qualquer preço ou burlá-lo finalisticamente são estratégias míopes que negam a premente necessidade de atualização das regras fiscais brasileiras. A esse respeito, deveras contundente é o alerta de José Roberto Afonso (em entrevista disponível aqui):
“Acredito que todas as regras fiscais serão repensadas. Se caminhamos para um novo normal para economia e para sociedade, não há porque se ater a normas construídas para um passado que não se repete.
[...] O Brasil ainda está na fase de aumentar o tamanho do túnel e da escuridão. O novo normal passará por mais digitalização da economia e nova proteção social dos trabalhadores. O mundo já estava a discutir essas questões bem complexas e desafiadoras, será ótimo que o País também se integre a esse debate.
[...] Discurso não é prática, muito menos o liberalismo não deveria se confundir com inépcia. É irrelevante o tamanho do Estado, se gordo ou magro. Importa que seja forte, tenha capacidade de reduzir desigualdade.
[...] Não adianta reformar o que por ora não tem forma definida. Será preciso reinventar instituições e regras. Para tanto, é preciso ter diagnóstico realista. Há século e meio atrás, o Brasil cobrava imposto sobre propriedade e comércio de escravos. A escravidão acabou e obviamente se tornou algo inaceitável na sociedade de hoje.
[...] A Constituição de 1988 previu um financiamento múltiplo da seguridade social, que inclui a saúde, de modo a cobrar contribuições de folha salarial, faturamento e lucro. É um caminho que nunca foi bem assimilado no País. Seria interessante voltar ao espírito da Constituinte.”
Se é certo que as regras fiscais brasileiras precisam ser repensadas, devemos racionalmente aceitar que alterar o teto dado pela Emenda 95/2016 é exigência da realidade que não pode ser vilanizada, como se fosse uma espécie de pecado ou afronta a dogma religioso. Aliás, vale lembrar que o teto já foi alterado pela Emenda 102/2019, em relação à exceção aberta para repartição federativa dos recursos oriundos da cessão onerosa do pré-sal (inciso V inserido ao §6º do art. 107 do ADCT).
Pessoalmente tenho pensado muito sobre os riscos fiscais constantes do projeto de lei de diretrizes orçamentárias para 2021 (PLDO/2021) e há dois meses, nesta Coluna Contas à Vista, alertei para o risco de que o teto de despesas primárias não se sustente em 2021.
Também desde junho tenho escrito sobre a necessidade de um plano bienal de enfrentamento da calamidade pública decorrente da Covid-19, como se pode ler aqui e reiterado aqui.
Planejar a gestão da crise de forma mais longeva traria maior transparência e racionalidade decisória para o ciclo orçamentário brasileiro, além de permitir que o debate sobre ajuste fiscal seja menos passional e ideológico, sobretudo diante do risco de abuso de poder político às vésperas do calendário eleitoral municipal. Também aqui a crítica de José Roberto Afonso é absolutamente oportuna em relação à gestão da pandemia feita pelo governo federal:
"A ciência das finanças foi abandonada e no seu lugar medidas estão sendo adotadas sem menor rigor técnico. O socorro virou uma grande transferência voluntária em que o governo federal transfere para quem quer e não para quem realmente precisa."
Para superar a primazia do patrimonialismo fiscal e do curto prazismo eleitoral, precisamos repensar o ciclo orçamentário para 2021 à luz do déficit de 100 mil vidas perdidas registrado no último sábado.
Há de haver, entre nós, uma espécie de justiça fiscal de transição que promova a recuperação da centralidade do dever de preservar vidas e que também resguarde custeio suficiente para a continuidade dos serviços públicos essenciais por meio de planejamento bienal federativamente equilibrado das ações de enfrentamento dos efeitos da Covid-19.
Um bom ponto de partida para isso seria resguardar a sustentação dos repasses federativos — na forma do art. 107, §6º, inciso I do ADCT — em patamar suficiente para custear os serviços públicos essenciais, caso a estimativa de arrecadação tributária dos diversos entes da federação siga frustrada ao longo de 2021. Os parâmetros estreitos previstos na Lei Complementar 173/2020 poderiam ser revistos, em diálogo com a exceção ao teto já vigente naquele dispositivo acima citado.
Afinal, no suposto confronto entre a Constituição de 1988 e orçamento regido pelo teto da Emenda 95, devemos nos lembrar que o orçamento e o próprio teto só são legítimos em face daquela. Talvez, precisamente por isso, o maior desafio do PLOA/2021 de todos os entes políticos seja responder — de forma desnudada e dramática — qual é a razão de ser do Estado brasileiro.
1 Algo já refutado pelo Ministério Público de Contas e pelo Tribunal de Contas da União, como se pode ler em https://economia.estadao.com.br/noticias/geral,mp-quer-que-tcu-barre-manobras-do-governo-para-driblar-teto-de-gastos-e-usar-credito-extra-em-obras,70003381826 e https://economia.estadao.com.br/noticias/geral,tcu-recomenda-que-governo-nao-use-creditos-extras-da-pandemia-para-burlar-teto-de-gastos,70003389067
2 Noticiado em https://noticias.uol.com.br/colunas/josias-de-souza/2020/07/20/maia-diz-que-governo-tenta-burlar-teto-de-gastos.htm
Élida Graziane Pinto* é procuradora do Ministério Público de Contas do Estado de São Paulo, pós-doutora em Administração pela Escola Brasileira de Administração Pública e de Empresas da Fundação Getulio Vargas (FGV/RJ) e doutora em Direito Administrativo pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG).