No momento em que o Brasil, através de José Graziano, conquista a direção da FAO, é um bom momento para lembrar um de nossos maiores homens: Josué de Castro.
Alguns dias após o golpe de 1964, a ditadura causou um escândalo internacional: a cassação do médico e geógrafo Josué de Castro, do educador Anísio Teixeira e do economista Celso Furtado. Os três eram autoridades em suas áreas de atuação, com renome mundial e obra conhecida em todos os países civilizados.
Josué de Castro fora duas vezes presidente do Conselho da FAO, eleito presidente do Comitê Governamental da Campanha de Luta Contra a Fome, da ONU, recebera o Prêmio Roosevelt, nos EUA, e, na França, a Grande Medalha da Cidade de Paris e a comenda de oficial da Legião de Honra.
Mas foi cassado, exilado e não retornou ao país que ele tanto amou e estudou. Faleceu em Paris, no ano de 1973. Podemos aqui dar apenas uma amostra da atualidade do seu pensamento: “É mesmo esta a característica essencial do desenvolvimento econômico do tipo colonialista, bem diferente do desenvolvimento econômico autêntico de tipo nacionalista. O colonialismo promoveu pelo mundo uma certa forma de progresso, mas sempre a serviço dos seus lucros exclusivos, ou quando muito associado a um pequeno número de nacionais privilegiados que se desinteressavam pelo futuro da nacionalidade, pelas aspirações políticas, sociais e culturais da maioria. Daí o desenvolvimento anômalo, setorial, limitado a certos setores mais rendosos, de maior atrativo para o capital especulativo, deixando no abandono outros setores básicos, indispensáveis ao verdadeiro progresso social”.
Desde 1933, quando publicou “O Problema da Alimentação no Brasil”, e, principalmente, desde 1946, quando sua “Geografia da Fome” causou um impacto mundial poucas vezes suscitado por qualquer livro, Josué era considerado um dos gigantes da nacionalidade.
O texto que hoje publicamos, em condensação, é de outra grande figura brasileira, o geógrafo Manuel Correia de Andrade, pernambucano como Josué, e também autor de obra imprescindível – o seu “A Terra e o Homem no Nordeste” é um dos livros mais importantes já escritos sobre o nosso país.
O texto foi extraído da coletânea “Josué de Castro e o Brasil”, publicado pela Fundação Perseu Abramo, que pode ser encontrada na excelente biblioteca digital desta instituição (www.fpabramo.org.br/bibliotecadigital).
MANUEL CORREIA DE ANDRADE
Josué de Castro era ao mesmo tempo um homem de academia, um professor universitário, um homem que convivia com o povo e com os fatos e acontecimentos, um pesquisador e um estudioso preocupado com as transformações da sociedade; tinha também uma ação política, na época considerada de esquerda. Algumas de suas frases foram e continuam a ser marcantes, como aquela em que afirmou:
“Não foi na Sorbonne, nem em qualquer outra universidade sábia que travei conhecimento com o fenômeno da fome. A fome se revelou espontaneamente aos meus olhos nos mangues do Capibaribe, nos bairros miseráveis do Recife – Afogados, Pina, Santo Amaro, Ilha do Leite. Esta foi a minha Sorbonne”.
Em outro texto, coroando a diretriz do seu pensamento, ele afirmou:
“O subdesenvolvimento não é, como muitos pensam equivocadamente, insuficiência ou ausência de desenvolvimento. O subdesenvolvimento é um produto ou um subproduto do desenvolvimento, uma derivação inevitável da exploração econômica colonial ou neocolonial, que continua se exercendo sobre diversas regiões do planeta”.
Essas frases mostram que Josué de Castro não era um intelectual alienado e encerrado em uma torre de marfim; ao contrário, era um homem que juntava ao saber acadêmico o saber adquirido na observação empírica, na reflexão direta da realidade e na absorção da cultura popular, que Camões, no século XVI, considerava “o saber da experiência feita”. Ele mostra que não se deixou enganar pelas teorizações de muitos cientistas de renome que, a serviço de países ou de megaempresas, formulavam teorias que beneficiariam as forças econômicas internacionais e justificariam a exploração e a pauperização das populações periféricas, hoje tão acentuadas, com a substituição da fase imperialista pela fase globalizadora, na economia capitalista mundial.
ATUALIDADE DAS IDÉIAS
No início de sua carreira foi professor de fisiologia da Faculdade de Medicina do Recife, tendo sido aprovado, ainda muito jovem, em concurso de livre-docência; transferindo-se em seguida para o Rio de Janeiro, passou a ensinar, inicialmente, antropologia e, mais tarde, geografia humana, na então Universidade do Distrito Federal. Leitor compulsivo, ao abraçar a geografia tornou-se em pouco tempo um profundo conhecedor da escola francesa de geografia, então com grandes seguidores no Brasil. Quando ainda estava no Recife, realizando pesquisas de campo, observou que um terço da população pernambucana vivia em mocambos, palafitas sobre os manguezais do Capibaribe e do Beberibe, e cuja alimentação básica era retirada do mangue, constando de caranguejos, siris e aratus. Daí a atenção que deu, em seus estudos, a esse tipo de alimentação.
O trabalho de pesquisa de campo levou-o a uma intensa convivência com o povo, com a população pobre de sua cidade, em grande parte formada por migrantes, vindos do interior, e a se abeberar do conhecimento dos seus usos e costumes. Foi certamente essa convivência que o inspiraria a escrever um dos seus últimos livros, Homens e Caranguejos, e a sua famosa tese de cátedra, Fatores de localização da cidade do Recife. Essa vivência direta com o povo levou-o também à vida política, como militante do Partido Trabalhista Brasileiro, e à sua eleição, por duas vezes, em 1954 e em 1958, à deputação federal.
Do leque de ideias que defendeu, algumas se tornaram célebres, como a da necessidade de uma melhor educação alimentar, mostrando os alimentos mais indicados para a população brasileira e combatendo os chamados tabus alimentares então enunciados em sentenças consagradas, como a que dizia “manga de manhã é ouro, de tarde é prata e à noite mata”. Chamava a atenção para o fato de que no Brasil havia os que tinham fome por que não tinham o que comer e os que se superalimentavam, mas não o faziam de acordo com as necessidades do organismo. E a educação seria a grande via de correção dos maus hábitos alimentares.
A ideia que defendeu com mais ênfase foi a de que o Brasil não era o paraíso tropical que muitos autores consideravam; ao contrário, era um purgatório onde vivia uma população mal alimentada ou esfomeada.
Ao passar da análise do problema em escala brasileira para a mundial, Josué de Castro tornou-se um grande observador dos fatores do subdesenvolvimento, o que o levou à atuação em organismos internacionais, como a Organização das Nações para a Agricultura e a Alimentação (FAO), e à elaboração do seu livro Geopolítica da fome. Começou por discordar do conceito de subdesenvolvimento, que a maioria dos cientistas sociais afirmava ser um estágio no caminho do desenvolvimento e que, investindo-se nos países subdesenvolvidos, eles se desenvolveriam e atingiriam o estágio em que se encontravam os países do Primeiro Mundo. Essa ideia foi contestada tanto por cientistas como Josué de Castro (1951) como por Charles Bettelheim (1964), quando levantaram a tese de que o subdesenvolvimento era um subproduto do desenvolvimento e ocorria em consequência da expansão europeia nos trópicos e da exploração agrícola e mineral do mundo tropical.
Na realidade, os países conquistados direta ou indiretamente – a Tailândia e a China nunca foram colônias formais – tiveram a sua economia desviada do atendimento às necessidades de sua população para o atendimento à demanda do mercado internacional. E esse desvio foi feito sob o comando de governos colonialistas e de empresas coloniais, de forma que os nativos ofereciam o trabalho e a submissão e os colonizadores controlavam a produção e a comercialização. Desse modo, os colonizados forneciam a força de trabalho e os colonizadores se apropriavam da mais-valia.
Foi a partir dessas ideias que Josué de Castro elaborou o seu livro Geopolítica da fome (1951), que lhe valeu o reconhecimento internacional e lhe deu o título de Cidadão do Mundo. Nele, o cientista propunha modificações políticas e econômicas substanciais que impediriam o processo de espoliação do mundo dito subdesenvolvido e evitariam a propagação da fome que hoje atinge dois terços da população do planeta.
Partindo dessas ideias, podemos analisar sua obra e compreender a razão de elas permanecerem tão reais, nos dias que correm, que clamam por reformas que as elites brasileiras vêm permanentemente adiando.
A FOME NO BRASIL
Com a sua grande extensão territorial e as grandes diversificações naturais, é forçoso que o Brasil apresente níveis de desenvolvimento e de condições de vida os mais diversos. Daí os estudiosos procurarem dividi-lo, desde a segunda metade do século XIX, em grandes regiões, e o governo federal, para implantar uma política de estudos e de pesquisas no território nacional, dividi-lo em cinco grandes regiões geográficas. Já na década de 1930, Gilberto Freyre, ao estudar o Nordeste, dividira esta grande região em duas porções, uma em que dominava o clima úmido e por ele chamada de Nordeste, e outra onde dominava o clima seco, semi-árido, que ele chamou de O Outro Nordeste. Escreveu um livro sobre a primeira porção (1937), enquanto Djacir Menezes escreveria um outro sobre a segunda parte do Nordeste (1937). Contrapunham-se, desse modo, dois Nordestes, o da cana-de-açúcar e o Nordeste do algodão e do gado.
Josué de Castro, ao estudar o Brasil como um todo, preferiu dividi-lo em cinco grandes regiões: a Amazônia, de clima equatorial superúmido; o Nordeste Açucareiro, com o clima equatorial úmido, com duas estações, uma seca e outra chuvosa; o Nordeste seco, hoje chamado semi-árido, que vinha sendo assolado, periodicamente, desde o início da colonização, no século XVI, por grandes secas; o Centro-Oeste, com clima tropical; e, finalmente, o Sul, com clima subtropical. Acompanhando essas variações climáticas ocorreriam também variações nos sistemas alimentares.
Nas três primeiras regiões registrava-se, de forma acentuada, o problema da fome, endêmica ou epidêmica.
Enquanto na Amazônia a fome era provocada sobretudo por razões de ordem natural, nos dois Nordestes ela era provocada por razões de ordem social, como consequência da ação do homem, a partir do processo de povoamento.
A região amazônica, na época em que Josué escreveu o seu livro Geografia da Fome, ainda era uma área subpovoada; a penetração na sua hinterlândia era feita através dos rios e as principais cidades eram portos estrategicamente localizados. A região fora povoada principalmente por penetradores que se dedicavam ao extrativismo e a pequenas lavouras de subsistência. Sofreu, porém, um grande impacto populacional no período de 1870 a 1910, com o surto da produção da borracha para atender à demanda do mercado internacional. Passado o rush, a região entrou em decadência, os povoadores emigraram ou passaram a se dedicar à pesca e à pequena lavoura e, como consequência, as cidades estagnaram.
Nessa fase de conquista, a alimentação básica era composta por farinha de mandioca, feijão, peixe e rapadura, fabricada por pequenos engenhos ou importada do Nordeste. A carne era obtida com a caça de animais silvestres e as frutas, colhidas na floresta, completavam o cardápio. Era um regime alimentar insuficiente que provocava a incidência de endemias, devido à falta de cálcio, de sódio e de vitaminas A e B1 na alimentação. Numerosas doenças afligiam a população, como o beribéri, a tuberculose, as verminoses e a malária.
No Nordeste açucareiro, onde havia solos férteis – argila laterítica e massapé – e chuvas abundantes, o sistema colonial provocara a derrubada da mata atlântica, substituindo-a por canaviais. As terras apropriadas sob a forma de sesmarias privilegiaram os colonizadores, que escravizaram os indígenas para os trabalhos agrícolas e introduziram negros africanos como escravos, estabelecendo um sistema divorciado da realidade natural. Embora houvesse diferenças quantitativas e qualitativas entre a alimentação da casa-grande e da senzala, podia-se generalizar que no Nordeste açucareiro os alimentos mais usados eram a farinha de mandioca, o aipim, o charque e o açúcar, havendo sérias carências alimentares decorrentes da falta de ferro e de sódio, carências que atingiam sobretudo as crianças pobres e mal alimentadas que “comiam terra”, fato apontado como um vício, mas que era, na realidade, uma defesa do organismo. Na área ainda se observava a incidência de verminoses, que faziam que a cultura popular considerasse o matuto, homem da região da Mata, mais fraco do que o sertanejo, homem da região seca, como na famosa a frase de Euclides da Cunha, muito citada: “O sertanejo é antes de tudo um forte”.
No Nordeste semi-árido dominava uma economia baseada na pecuária de bovinos e de caprinos, o que levava o homem da região a ter maior acesso à carne e ao leite. Foi nesta região que surgiram as primeiras charqueadas, depois transferidas para o Rio Grande do Sul e posteriormente para Mato Grosso. Complementavam estes alimentos com o feijão, a rapadura e o milho. Embora sabendo-se que, nas áreas em que o milho participa intensamente do cardápio alimentar, ocorre com frequência a pelagra, no sertão nordestino isso não ocorre porque nos vários pratos regionais à base de milho o leite está sempre presente. Apesar de tudo, a alimentação é pobre em proteínas, em sódio e em iodo.
A vantagem sobre a mata é que no sertão, apesar do domínio do latifúndio, este não é acompanhado pela monocultura, o que faz com que a produção agrícola e pecuária seja mais diversificada e a concentração de renda seja menor. Também aí a fome não é endêmica, como na região úmida, mas epidêmica, uma vez que ocorre apenas nos períodos de seca.
O Centro-Oeste de Josué de Castro compreende, hoje, as regiões Sudeste e Centro-Oeste, em que a alimentação tem como base o milho, o feijão, a carne e o toucinho, já que, ao lado do rebanho bovino, há um expressivo rebanho suíno. Mas falta iodo na alimentação, o que provoca a ocorrência de doenças como o bócio.
Finalmente, na região Sul, onde o peso do latifúndio foi menor do que nas demais regiões, foram implantadas, nos séculos XIX e XX, colônias de imigrantes europeus e asiáticos, dominando o sistema de pequenas propriedades familiares. O regime alimentar era o mais equilibrado, havendo expressivo consumo de carne, de pão de trigo, de arroz e de batata, produtos que só vieram a se expandir no meio urbano das outras regiões no século XX.
URBANIZAÇÃO E REGIME ALIMENTAR
Na segunda metade do século XX, acelerou-se o processo de urbanização e o Brasil passou a ter várias cidades com mais de 1 milhão de habitantes, ao mesmo tempo que o crescimento das comunicações levou a costumes e hábitos alimentares diferentes que se difundiram pelo território nacional, com tendência a homogeneização.
Na década de 1940 fazia-se uma distinção entre os frutos importados, maçã, pera e uva, e os frutos da terra, como a banana, a manga, o abacaxi e a laranja, considerando-se os primeiros típicos das mesas ricas e os últimos das mesas pobres; mas ocorreram grandes modificações e a uva, hoje, tornou-se um dos produtos básicos de cultivo das áreas irrigadas do submédio São Francisco. Alimentos europeus e americanos se difundiram de tal forma que hoje, no Brasil, consome-se mais Coca-Cola do que guaraná. As lanchonetes que se espalham por cidades grandes e médias difundem alimentos que não eram conhecidos na década de 1940, como os sanduíches fast food e as massas italianas.
Apesar da influência dos importados, sejam frutos, massas ou conservas, a grande maioria da população mais pobre do país continua carente de nutrientes e vítima não só da fome aguda – falta absoluta de alimentos – como da fome crônica, em grande parte provocada por uma alimentação inadequada, devida em parte à propaganda comercial em favor de alimentos oriundos de outros países e regiões.
Josué de Castro já chamava a atenção para tudo isso que ocorre hoje no seu livro Geopolítica da Fome, em vista do processo de colonização que gerou o subdesenvolvimento. Já em meados do século XX, ele afirmava que o subdesenvolvimento não era consequência de uma diferença na rapidez do desenvolvimento entre o país desenvolvido e o subdesenvolvido, mas de uma distorção realizada no país, hoje subdesenvolvido, pelo sistema colonial. O país que submetia um outro ao seu domínio procurava dirigir-lhe a economia tendo em vista atender aos interesses do país dominante, impedindo que o dominado se voltasse para o atendimento das necessidades de sua população. Dava-se, assim, um freio ao desenvolvimento do país dominado e este ia, aos poucos, ou às vezes rapidamente, entrando em decadência. Para o mestre pernambucano, o subdesenvolvimento era um produto, o resultado do desenvolvimento. Essas ideias desagradaram às classes dominantes tanto dos países desenvolvidos como dos subdesenvolvidos, porque também se beneficiavam das distorções realizadas.
AS IDEIAS BÁSICAS
Diante dessas reflexões podemos chamar a atenção para o fato de que entre suas ideias básicas avultavam:
a) a necessidade da realização de uma reforma agrária;
b) a necessidade de desenvolvimento de uma educação que não se limitasse apenas à alfabetização, mas que se fizesse acompanhar de um processo educacional que atingisse problemas básicos, como o alimentar;
c) a necessidade de se reduzirem os desníveis de desenvolvimento regional tanto no território brasileiro como entre os países, em escala internacional, a fim de que se eliminasse o subdesenvolvimento.
Por essas ideias gerais e por posições que as complementavam, lutou o cientista – médico e geógrafo –, o professor, o cidadão e o político; a fidelidade a esse ideal o fez enfrentar grandes campanhas movidas pelos grupos conservadores e reacionários que culminaram com o exílio a que foi condenado pelo governo contrarrevolucionário de 1964.