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Garantias de custeio das cláusulas pétreas são remédios constitucionais

Escrito por Élida Graziane Pinto e Deborah Duprat para o site Conjur28 de Jan de 2020 às 10:58
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Quais escolhas constitucionais perenizam nosso compromisso civilizatório comum? Como amparar o complexo processo de execução de tais escolhas cotidianamente para que elas não sejam meras promessas formais, sobretudo em face das mudanças sociais e econômicas?

Cláusulas pétreas custam[1] e o orçamento público precisa lhes resguardar suficiente financiamento como garantia de sobrevivência da nossa identidade constitucional. Eis a razão pela qual a Constituição de 1988 não só as arrolou em seu art. 60, §4º, como também fixou seus respectivos meios operacionais e financeiros de consecução, conforme vemos a seguir:

Cláusulas pétreas

Muito embora a tabela acima tenha tido a deliberada intenção de fomentar uma rápida e primária comparação, interessa-nos, a partir dela, dar um passo adiante. A questão que trazemos para debate é: considerando que não há densidade normativa na afirmação formal das cláusulas de identidade constitucional, se não houver efetivo resguardo dos mínimos meios necessários para sua consecução, qual seria a natureza jurídica das garantias orçamentário-financeiras que as amparam?

Como o próprio título deste artigo antecipa, nossa hipótese – que esposamos ao lado de sólida corrente doutrinária[2] – é a de que todas as garantias instrumentais das cláusulas pétreas devem ser consideradas como expressão da sua dimensão objetiva[3] (verdadeiros deveres de tutela estatal) e, portanto, devem integrar o rol ampliado dos usualmente denominados “remédios constitucionais”.

Do ponto de vista do cidadão que percebe a atuação estatal, mesmo entre as próprias cláusulas pétreas, cabe pautar nexo de instrumentalidade recíproco, na medida em que três delas são meios para assegurar o devido processo de perfazimento dos fins inscritos na última.

Nuclearmente, o pacto constitucional brasileiro determina que haja o exercício democrático do poder na federação, assim como que ele esteja sujeito aos influxos recíprocos de controle. Mas isso não basta, uma vez que a organização legítima do exercício do poder (eleito democraticamente, separado funcionalmente e distribuído territorialmente) não é um fim em si mesmo em nosso país.

Ao nosso sentir, os três primeiros incisos do §4º do art. 60 mobilizam poderosos e onerosos instrumentos em prol da finalidade primordial de implementação progressiva dos direitos fundamentais, que, de fato, é o último e mais exigente inciso do aludido elenco de cláusulas pétreas.

O desafio é equalizar limites fiscais e diversos pleitos que concomitantemente clamam por priorização orçamentária, sem perder de vista – em qualquer cenário – a primazia do custeio dos direitos fundamentais. Cabe retomar, a propósito, o enfático aviso dado pelo Ministro Celso de Mello na ADPF 45:

“[...] a realização dos direitos econômicos, sociais e culturais – além de caracterizar-se pela gradualidade de seu processo de concretização – depende, em grande medida, de um inescapável vínculo financeiro subordinado às possibilidades orçamentárias do Estado, de tal modo que, comprovada, objetivamente, a incapacidade econômico-financeira da pessoa estatal, desta não se poderá razoavelmente exigir, considerada a limitação material referida, a imediata efetivação do comando fundado no texto da Carta Política.

Não se mostrará lícito, no entanto, ao Poder Público, em tal hipótese – mediante indevida manipulação de sua atividade financeira e/ou político-administrativa – criar obstáculo artificial que revele o ilegítimo, arbitrário e censurável propósito de fraudar, de frustrar e de inviabilizar o estabelecimento e a preservação, em favor da pessoa e dos cidadãos, de condições materiais mínimas de existência.

Cumpre advertir, desse modo, que a cláusula da “reserva do possível” – ressalvada a ocorrência de justo motivo objetivamente aferível – não pode ser invocada, pelo Estado, com a finalidade de exonerar-se do cumprimento de suas obrigações constitucionais, notadamente quando, dessa conduta governamental negativa, puder resultar nulificação ou, até mesmo, aniquilação de direitos constitucionais impregnados de um sentido de essencial fundamentalidade.”

O que estava em debate em 2004 na aludida arguição de descumprimento de preceito fundamental era o próprio alcance do piso federal em saúde, diante do risco do seu falseamento contábil. Naquela ocasião, o STF restabeleceu – conceitualmente, ainda que de forma indireta – a integridade do gasto mínimo em saúde, ao impor à União um reforçado ônus de motivar a sempre aventada tese de “reserva do possível” em meio à cotidiana gestão da escassez. Tornou-se obrigatório motivar a gestão do custo de oportunidade de onde e como melhor alocar recursos humanos, econômicos, temporais ou tecnológicos. Isso porque a Fazenda Pública deveria apresentar “justo motivo objetivamente aferível” diante da frustração, adiamento ou restrição de eficácia dos direitos sociais, para que fosse afastada a impugnação de que o governo apenas estaria a promover uma “indevida manipulação de sua atividade financeira”.

A despeito da reafirmação jurisprudencial da presunção de prioridade orçamentária em prol do piso federal em saúde e mesmo após o decurso de 16 anos desde a ADPF 45, nós pouco avançamos no controle jurídico do ciclo orçamentário[4] de todos os entes da federação.

Rendemo-nos facilmente à univocidade de propostas gravosas, sem maiores indagações sobre a existência de rotas alternativas de ajuste fiscal (para enfrentar francas iniquidades como, por exemplo, as renúncias fiscais concedidas por prazo indeterminado e a inconstitucional omissão em fixar limites para as dívidas consolidada e mobiliária federal).

Quedamo-nos juridicamente inertes, sob a chantagem do risco de “horror econômico”[5], em face de agendas discricionárias e, por vezes, erráticas que supostamente reclamam urgência/emergência, mas que se prestam o papel de desconstrução paulatina[6] e nada transitória daquelas garantias de custeio das próprias cláusulas pétreas.

Assim se sucederam oito (!) emendas de Desvinculação das Receitas da União (DRU) e uma emenda sobre o “Novo Regime Fiscal”, que, na prática, visaram restringir (quiçá uma erosão deliberada[7]) a sistemática de priorização orçamentária dos direitos sociais inscrita no texto permanente da Constituição de 1988 por, respectivamente, 29 e 20 anos.

Eis o contexto em que chegamos a este ano de 2020, no qual todos os que lutamos em prol da máxima eficácia dos direitos fundamentais não conseguimos refutar, com clareza e ênfase necessárias, a inconstitucionalidade de algumas teses econômicas[8] e propostas de emenda[9] que relativizam e até pugnam pela extinção das vinculações orçamentárias protetivas do custeio dos direitos fundamentais.

A pretensão de inserir no art. 6º da Constituição o princípio do equilíbrio fiscal intergeracional tende a desconstruir a presunção de prioridade orçamentária que milita em favor dos direitos fundamentais. Daí decorre o risco de que seja paulatinamente desfeito o legado interpretativo da ADPF 45, em nosso país tão desigual e tão carente de serviços públicos essenciais.

Precisamos nos unir, pois, em torno da defesa do pacto constitucional civilizatório de 1988. É tempo de resgatarmos a centralidade da teoria dos direitos fundamentais, em prol de medidas de ajuste fiscal constitucionalmente adequadas e mais equitativas.

Cabe a nós exercermos o contraditório contra teses reducionistas que buscam a extinção da garantia de gasto mínimo em direitos sociais proporcional à arrecadação estatal. Ora, o que está em xeque é o próprio horizonte da implementação progressiva dos direitos fundamentais, diante da ruptura do liame nuclear do gasto mínimo social em proporção da receita governamental.

Sustentamos, aqui, a necessidade de que seja resguardado o processo de sedimentação da jurisprudência protetiva do STF. Aliás, um belo farol interpretativo foi aberto com a cautelar concedida pelo Ministro Ricardo Lewandowski na ADI 5595 (cuja retomada do julgamento está pautada para o próximo dia 11/03/2020), senão vejamos:

“Não cabe omissão deliberada, tampouco retrocesso no custeio do direito à saúde, ainda que não se possa pretender assegurar ilimitadamente – no campo das demandas individuais, inclusive judiciais, pela integralidade do direito à saúde – tratamentos alheios aos limites orçamentários, administrativos e tecnológicos da política pública.

[...] Fato é que a ocorrência de reforma constitucional que vise ao aprimoramento dos direitos e garantias fundamentais é medida desejável de atualização dos fins e preceitos da CF, mas alterações que impliquem retrocesso no estágio de proteção por eles alcançado não são admissíveis, ainda que a pretexto de limites orçamentário-financeiros.”

É chegado o momento em que devemos afirmar, com força teórica e resgate da integridade constitucional, que as garantias orçamentário-financeiras que amparam as cláusulas pétreas também estão protegidas pelo princípio da vedação de retrocesso. Conforme a parte final do inciso IV do §4º do art. 60, as vinculações orçamentárias são elas próprias – na qualidade de garantias fundamentais – cláusulas pétreas.

Garantias de custeio são uma espécie ampliada de remédios constitucionais e, assim como o habeas corpus, o mandado de segurança, a ação popular, o habeas data e o mandado de injunção, são instrumentos operacionais de defesa da consecução material das cláusulas pétreas substantivas.

Vedar retrocesso não é vedar a necessidade de correção de rumos. Tais dispositivos podem ser alterados, sim, para aprimorá-los, o que, ao nosso sentir, significa prever, por exemplo, que o dever de execução dos pisos em saúde e educação seja feito de forma estritamente aderente aos respectivos instrumentos de planejamento setorial.

Melhorar as vinculações orçamentárias para resguardar a qualidade dos gastos públicos empreendidos em seu nome é medida de reforço da identidade constitucional. Por outro lado, sua pura e simples extinção, a pretexto de abstrata eficiência ou suposta alocação democrática pelos governantes de ocasião, traz consigo o risco de aplicação curto prazista e fisiológica dos escassos recursos públicos, além do risco de descontinuidade de serviços públicos essenciais.

A tensão entre o que pode ser mudado e o que deve ser mantido na dinâmica constitucional brasileira cada vez mais tem se desenrolado – dramática e diuturnamente – na disputa sobre o que é prioridade alocativa (ou não) dentro do ciclo orçamentário.

A erosão de qualquer dos quatro pilares inscritos no §4º do art. 60 da CF fragiliza estruturalmente nosso ordenamento, pois há entre eles evidente conexão reflexiva e reforço normativo. Infelizmente, contudo, a comunidade jurídica não tem tido suficiente clareza sobre o severo risco de desmoronamento fiscal das cláusulas pétreas, a pretexto de desvinculação, desindexação e desobrigação do ciclo orçamentário em relação, sobretudo, aos direitos sociais.

Insistimos, uma vez mais, que não basta formalmente vedarmos que não haja mitigação da (I) federação brasileira; do (II) ciclo eleitoral mediante voto direto, secreto, universal e periódico ou mesmo, ainda, do (III) sistema de freios e contrapesos. É necessário que defendamos, mediante garantia de prioridade orçamentária efetiva, o compromisso civilizatório para com a realização intertemporal dos (IV) direitos fundamentais.

Afinal, a razão de ser do Estado brasileiro e mesmo a finalidade da distribuição do poder federativamente, em um sistema balanceado de controle e sob influxo democrático-eleitoral, em última instância, é resguardar a vida digna de todos os cidadãos, por meio de serviços públicos e políticas públicas que implantem progressivamente a máxima eficácia dos direitos fundamentais.

[1] Como, aliás, todos os direitos: HOLMES, Stephen; SUNSTEIN, Cass R. O custo dos direitos: por que a liberdade depende dos impostos. Tradução de Marcelo Brandão Cipolla. São Paulo: WMF Martins Fontes, 2019.

[2] Como suscitado, aliás, por Ingo Wolfgang Sarlet, Fábio Konder Comparato, Heleno Taveira Torres e Fernando Facury Scaff. A título de exemplo, neste Conjur arrolamos os seguintes artigos https://www.conjur.com.br/2015-dez-17/custeio-minimo-direitos-fundamentais-maxima-protecao-cf, https://www.conjur.com.br/2016-jul-27/financiamento-direitos-saude-educacao-minimos-inegociaveis e https://www.conjur.com.br/2014-mai-20/orcamento-minimo-social-entre-liberdade-vinculacao

[3] No sentido propugnado por SARLET, Ingo W. A eficácia dos direitos fundamentais: uma teoria geral dos direitos fundamentais na perspectiva constitucional. 10. ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2009, p. 145-151.

[4] É preciso questionar a ilegitimidade da realização de gastos discricionários diante do inadimplemento de obrigações de fazer inscritas nas leis de planejamento setorial e orçamentário que os próprios poderes políticos formularam (https://www.conjur.com.br/2019-abr-23/contas-vista-indicacao-judicial-fonte-custeio-desvendara-penumbras-orcamentarias)

[5] Como bem ironizara o Ministro Roberto Barroso na decisão sobre a revisão do dever de complementação federal ao extinto Fundef (noticiado em https://oglobo.globo.com/economia/stf-condena-uniao-fazer-repasses-estados-que-podem-chegar-r-50-bi-21794301)

[6] Uma espécie de “Retrato de Dorian Gray” fiscal que maneja o ADCT contra o próprio texto permanente da Constituição (https://www.conjur.com.br/2016-set-27/adct-retrato-dorian-gray-constituicao-1988

[7] Como debatido em http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_abstract&pid=S1413-81232019001204473&lng=en&nrm=iso&tlng=pt

[8] Por exemplo: https://valor.globo.com/opiniao/coluna/finalmente-estamos-fora-do-buraco-negro.ghtml

[9] Referimo-nos, em especial, à PEC 188/2019, em propostas aventadas de fusão e até extinção dos pisos em saúde e educação (https://www1.folha.uol.com.br/mercado/2020/01/apos-reuniao-com-guedes-relator-de-pec-propoe-fim-de-piso-de-recursos-para-saude-e-educacao.shtml)

   

 

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