Por Luís Eduardo Gomes
A auditora aposentada da Receita Federal e fundadora do Movimento Auditoria Cidadã da Dívida, Maria Lucia Fatorelli, esteve recentemente na Grécia participando do Comitê pela Auditoria da Dívida Grega, processo promovido pelo Parlamento do país com o auxílio de 30 especialistas internacionais. Nesta quarta-feira, ela concedeu uma entrevista coletiva para o Centro de Auditores Públicos do Tribunal de Contas do Estado/RS (Ceape), em que comparou a situação grega com a brasileira e salientou a necessidade de ser realizada uma auditoria nas dívidas da União e dos Estados, incluindo o Rio Grande do Sul.
Para tentar escapar do colapso financeiro gerado por uma dívida impagável, a Grécia vem recebendo desde 2010 resgates da chamada Troika – Comissão Europeia, o Banco Central Europeu (BCE) e o Fundo Monetário Internacional (FMI) – em valores superiores a 200 bilhões de euros em troca da adoção de políticas de austeridade.
Apesar dos bilhões europeus, a economia da Grécia vem naufragando nos últimos cinco anos (o PIB do país decaiu 25% no período) em decorrência da combinação de pagamentos de juros e implementação de políticas de austeridade. Segundo ela, este cenário estaria se repetindo no Brasil desde 1983, quando o governo brasileiro recebeu um pacote de socorro financeiro do FMI. A diferença seria que o Brasil tem mais riqueza para “sangrar”.
“O que aconteceu na Grécia, de 2010 a 2015, quando o FMI passou a intervir na Grécia, é exatamente o que vem acontecendo no Brasil desde 1983, quando o FMI passou a intervir aqui. E hoje, apesar de ter pago a dívida para o FMI e até emprestar ao fundo, estamos sujeitos a mesma política, ao mesmo receituário que a gente já sabe que é um veneno: política de juros altos, privilégio para o setor financeiro, privatizações e o ajuste fiscal (corte de gastos)”, afirma. “É um modelo que o FMI impõe aos países, mas não deu certo em lugar nenhum. Inclusive, tem estudo publicado no site do FMI que diz isso”, complementa, salientando que, caso as medidas não sejam adotadas, há a ameaça de isolamento financeiro.
Segundo cálculo do Movimento Auditoria Cidadã da Dívida, em 2015, o governo federal deve gastar aproximadamente R$ 1,35 trilhão com o pagamento da dívida público (entre juros e amortização), o que representa aproximadamente 47% do orçamento da União.
Dívida gaúcha também é impagável
No Rio Grande do Sul, o quadro da dívida é grave. O Ceape prevê que o gasto com a dívida pública chegue a R$ 3,5 bilhão, entre juros e amortização. Contudo, como o gasto do Estado com a dívida com a União está limitado constitucionalmente a 13%, mas os juros que incidem sobre a dívida – 6% mais o IGP-DI (índice geral de preços calculado pela inflação) são superiores a este percentual, a dívida do RS não para de crescer. Além disso, como o RS ainda deve para credores internacionais, no total, vem pagando, em média, 16% ao ano só de juros e amortização de sua dívida. Para efeito de comparação, o Estado é obrigado a destinar 12% do Orçamento para a Saúde.
Em 1998, quando a dívida foi refinanciada em acordo firmado pelo governo de Antônio Brito e a União, o Estado devia cerca de R$ 10,3 bilhões, o que, em valores corrigidos, representaria atualmente cerca de R$ 50 bilhões. De lá para cá, foram pagos R$ 45 bilhões (também em valores corrigidos), mas o RS ainda deve R$ 54 bilhões – dos quais cerca de R$ 47 bilhões são para a União. Isto significa que o RS ainda deve mais do que o valor devido originalmente.
Em uma projeção recente feita pela Auditoria Cidadã, a expectativa era de que, mantida a estrutura atual da dívida, o Estado conseguisse pagar a dívida apenas em 2075, isso mantidos patamares de inflação e crescimento do PIB, o que já não seria o caso em 2015.
Em realidade, porém, a dívida da maneira que está estruturada seria impagável. “E por que nunca vai ser pago? Porque criamos esse sistema da dívida. A dívida deveria ser um complemento, um financiamento, como ocorre na iniciativa privada. Você quer uma casa para sair do aluguel, você contrata um financiamento, paga o que pagaria de aluguel, aperta um pouco, e no final tem uma casa. Aquele endividamento tem uma justificativa real, que é se ter uma moradia. Quando você espreme a dívida pública, qual é a contrapartida?”, afirma.
A auditora aposentada diz que o que há de comum nesses três casos é o chamado sistema da dívida. “O sistema da dívida transforma o ente federado em um ente dominado pelo setor financeiro. Você está dominado, você tem que se submeter a uma série de políticas. É um instrumento de dominação que te obriga, por exemplo, a privatizar”, diz. “A jogada desse sistema é que você cria uma dívida, aí você coloca condições abusivas de juros, atualização automática e encargos. A coisa vai crescendo, vai ficando uma bola de neve, aí você não tem como pagar e entrega sua casa. No caso dos Estados, privatiza”.
Para Fatorelli, a única possibilidade de o Estado solucionar a questão da dívida passa pela realização de uma auditoria para se verificar irregularidades e a cobrança de juros abusivos. Segundo o Ceape, calculando o valor da dívida que se refere apenas ao juros sobre juros, chegaríamos a R$ 7,1 bilhões. Contudo, Fatorelli lembra que essa cobrança foi considerada ilegal por uma súmula do Supremo Tribunal Federal, portanto esse valor deveria ser deduzido da dívida total do Estado.
Investigar a origem da dívida
Além disso, Fatorelli explica que a auditoria da dívida seria importante para investigar a origem da dívida. Ela cita que, por exemplo, no momento de refinanciamento da dívida do Estado com a União, o RS assumiu passivo de R$ 2,3 bilhão (em valores da época) do Banrisul. Segundo Fatorelli, este valor deveria ser um crédito para o governo do Estado, mas tornou-se irregularmente uma parte da dívida.
“Quando a gente investiga a divida pública, nós encontramos uma série de mecanismos que transformam outras coisas em dívida pública. Por exemplo, no RS, o Proes (Programa de Incentivo à Redução do Setor Público Estadual na Atividade Bancária) foi um processo de incentivo aos bancos estaduais que seriam privatizados. Foi um processo em que o ente público assumiu passivos dos bancos. Isso é dívida pública? Não é”, afirma. “Da mesma forma, na década de 1980, existem transformações de dívidas privadas de multinacionais, de instituições financeiras, em dívida pública do governo federal”.
Segundo ela, também é preciso investigar o que está na origem do restante da dívida. Em Alagoas, por exemplo, a Auditoria Cidadã verificou que parte do era a dívida original desse Estado dizia respeito a passivos de usineiros de cana de açúcar que foram assumidos pelo governo estadual.