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Estado mínimo, fracasso máximo na gestão da Covid-19 e na LOA-2021

Leia artigo de Élida Graziane para o site Conjur

Escrito por Élida Graziane Pinto* para o site Conjur07 de Abr de 2021 às 10:13
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A efeméride da celebração do Dia Mundial da Saúde nesta quarta-feira (7/4) [1] revela-se particularmente dramática para a realidade brasileira neste 2021, porque acumulamos um terço das mortes diárias por Covid-19 no mundo, muito embora nossa população corresponda tão somente a cerca de 1/30 da população do planeta.

O fracasso brasileiro na gestão da pandemia é inegável aos olhos da comunidade internacional, na medida em que — é preciso repetir e enfatizar — acumulamos 33% das mortes diárias, a despeito de termos apenas 3% da população mundial.

Não só em termos proporcionais os números assustam. Em valores totais, vivemos um colapso sanitário e funerário internacionalmente destacado, até porque apenas em março deste ano morreram 66,8 mil brasileiros, patamar maior "do que na pandemia inteira em 109 países, que soma 1,6 bilhão de habitantes", como diagnosticado pela BBC News Brasil.

Se enfrentássemos com consistência as subnotificações, notadamente no contraste com as mortes por síndrome respiratória aguda grave (SRAG) e o excesso de mortalidade, saberíamos que já ultrapassamos a marca de "443 mil (mortes por Covid-19), quase 120 mil a mais que as estatísticas divulgadas pelo governo Bolsonaro", segundo a BBC.

Para quem defendia imunidade "natural" de rebanho por meio da circulação ostensiva do vírus e concebeu a volta plena do teto da Emenda 95/2016 neste ano de 2021, porque acreditava que a pandemia se findaria em 31/12/2020, bastava uma resposta fiscal temporalmente curta e insuficiente nos moldes do "orçamento de guerra" (EC 106/2020).

Todavia, tais arautos do Estado mínimo erraram nas três teses e agora colhemos um fracasso máximo em cada qual delas:

1) Não há imunidade "natural" de rebanho, por isso apenas agora correm atrás do prejuízo colossal causado pela deliberada escolha em comprar tardia e insuficientemente vacinas;

2) O teto de despesas primárias não se sustenta na continuidade do enfrentamento da pandemia em 2021, por isso passaram a defender o uso de créditos extraordinários para atender a despesas previsíveis, o que revela uma conduta cínica, abusiva e inconstitucional, como alertamos aqui;

3) A pandemia não terminou em 31/12/2020 e o "orçamento de guerra" deveria ter sido prorrogado, com a concomitante alteração do teto, para que a lei orçamentária de 2021 pudesse conceber soluções racionais e planejadas no diálogo entre Executivo e Legislativo. Era preciso retomar o "orçamento de guerra" em 2021 por dois motivos primordiais. O primeiro deles era para permitir que o Banco Central pudesse agir no mercado secundário da dívida pública, visando suavizar a ponta longa da curva de juros e evitando contrair ainda mais a atividade econômica por meio de uma elevação precipitada da taxa Selic, como inafortunadamente ocorreu em 17 de março deste ano, após seis anos de queda. O segundo motivo da necessidade de se retomar o "orçamento de guerra" seria propiciar ambiente fiscal suficientemente robusto para coordenação nacional da União com estados e municípios acerca das medidas necessárias de isolamento social, apoio assistencial à população vulnerável e sustentação econômica para a manutenção dos empregos e das micro e pequenas empresas. Todavia, infelizmente, nada disso foi feito e agora vivemos sob a égide pura e simples de um orçamento fictício que cancelou despesas obrigatórias para abrir margem patrimonialista para a expansão de emendas parlamentares.

Eis o contexto de inúmeros conflitos de interesse em que pregaram e ainda pregam um Estado mínimo — como se depreende do curtíssimo limite de R$ 44 bilhões para o auxílio emergencial na Emenda 109/2021 — para uma realidade que atesta o fracasso máximo do Brasil na gestão da pandemia.

A realidade é que caminhamos celeremente para superar as marcas de cinco mil mortes diárias e 500 mil vidas perdidas até maio deste ano. Tal fracasso não é obra do acaso, mas consequência de escolhas feitas na interface entre política fiscal e gestão sanitária da pandemia.

A seguir, transcrevemos — como registro histórico para a aferição futura das hipóteses de responsabilização cabível pelas ações e omissões danosas à sociedade e ao erário — três análises sobre a gestão brasileira da pandemia sob o regime fiscal de um Estado mínimo, o que impôs a guerra bruta por nacos orçamentários ("farinha pouca, meu pirão primeiro"), tão suscetível a capturas e conflito de interesses (a exemplo do curto prazo eleitoral no orçamento de 2021 e da controversa demanda por uma subida íngreme na taxa de juros), a despeito da escalada de mortes evitáveis, do elevado nível de desemprego e da forte desaceleração na economia.

Análise do Conselho Nacional de Saúde sobre a insuficiência no orçamento federal de 2021 de custeio adequado para o SUS em plena pandemia:

"O orçamento da saúde foi aprovado com valores equivalentes ao do piso federal do SUS do ano de 2017 (atualizados pela inflação do período). Isto significa a retirada de cerca de R$ 60 bilhões em comparação ao valor do orçamento de 2020, acrescido dos créditos extraordinários para suprir necessidades da Covid-19. Trata-se usar a mesma lógica que permitiu encerrar o estado de calamidade pública em 31 de dezembro de 2020, ou seja, de que não há mais necessidade de recursos para Covid-19 em 2021.
A proposta orçamentária elaborada pelo Governo Federal em agosto de 2020, em plena pandemia da Covid-19, [...] desconsiderou, de modo irreal e irresponsável, as necessidades de aquisição de vacinas, kits diagnósticos e insumos; de sustentabilidade e manutenção dos serviços prestados pelo SUS, como leitos clínicos e de UTI, equipamentos médicos, atendimento de sequelas da Covid-19, demanda reprimida de procedimentos ambulatoriais e hospitalares. Ignorou, pois, todas as ações de garantia da vida das pessoas — direito constitucional fundamental, inalienável, que não pode ser violado — em nome do teto de gastos da EC 95.
Mais grave ainda foi o Congresso Nacional, representante da sociedade, ter votado o orçamento, em 25 de março deste ano, assentindo com o gravíssimo erro do Governo Federal, mantendo de modo fictício e irresponsável o financiamento federal do SUS no nível semelhante ao piso de 2017, ano em que o país não amargava o luto pela morte de mais de 320 mil cidadãos e tinha uma população menor que a atual. Tudo isso está sendo feito em nome do ajuste fiscal, demonstrando que entre a vida do cidadão e a austeridade fiscal, prevaleceria o corte geral de gastos públicos 'custe o que custar'.
(...) No estágio atual da pandemia, a taxa de ocupação de leitos acima de 95% em quase todo o país, gerando um colapso no sistema assistencial à saúde da população, demonstrando que a emergência sanitária ainda persiste e que a pandemia irá se arrastar no ano em exercício e seus reflexos serão sentidos ainda nos próximos anos.
Importante alertar que não se poderá admitir, por absolutamente inconstitucional, a emissão de créditos extraordinários para financiar as ações de enfrentamento a Covid-19, por não mais se tratar de uma das situações imprevisíveis, conforme disposto na Constituição Federal".

Análise da Associação Nacional dos Servidores da Carreira de Planejamento e Orçamento sobre a inconstitucionalidade e a inexequibilidade da LOA-2021:

"O Orçamento da União para 2021, aprovado pelo Congresso Nacional com 3 meses de atraso, tem recebido críticas que merecem a atenção de todos os brasileiros. Três aspectos precisam ser ressaltados: i. as dotações orçamentárias são insuficientes para a manutenção da máquina pública e das políticas públicas já existentes; ii. diante do momento mais crítico da pandemia da Covid-19 no Brasil, sequer foram mantidos no orçamento deste ano os montantes de recursos disponibilizados em 2020 para as áreas de saúde e assistência social; e iii. a criatividade utilizada para reservar recursos para as programações orçamentárias de interesse dos parlamentares evidenciou como o emaranhado de regras fiscais atual favorece a realização de manobras contábeis e dificulta o controle social sobre o uso dos recursos públicos.
A obsessão pela redução dos gastos públicos e a priorização do cumprimento de metas fiscais de curtíssimo prazo, insensíveis aos ciclos econômicos e às necessidades sociais, estão impedindo o Estado brasileiro de cumprir adequadamente com suas atribuições constitucionais, o que acaba se refletindo nas leis orçamentárias. Nesse sentido, a maioria parlamentar que tem pautado as decisões do Congresso na área de finanças públicas é tão responsável pela catástrofe que estamos vivendo quanto os ideólogos do corte permanente de gastos como método de governo.
(...) Os recursos alocados ao pagamento dos benefícios previdenciários e do seguro-desemprego retirados da LOA 2021 terão que ser repostos por serem despesas obrigatórias. E como isso se dará? Por meio de créditos orçamentários adicionais que exigirão a realização de cortes ainda maiores nas despesas discricionárias.
Para não descumprir o teto de gastos, despesas discricionárias, como os insuficientes recursos hoje destinados à proteção ambiental e à pesquisa científica, precisarão ser canceladas. O censo, fundamental para o planejamento e a orçamentação das políticas públicas, já havia sido reconfigurado para custar menos e agora será inviabilizado pela falta de recursos. É razoável o Congresso Nacional aprovar o orçamento subestimando gastos obrigatórios para encaixar despesas discricionárias que depois terão que ser contingenciadas a fim de cumprir as regras fiscais que este mesmo Congresso aprovou anteriormente?
Temos reiteradamente manifestado a urgência de substituirmos as inexequíveis e contraditórias regras fiscais atuais por um arcabouço institucional que permita que os Planos Plurianuais, as Leis de Diretrizes Orçamentárias e as Leis Orçamentárias Anuais cumpram suas funções de permitir o planejamento democrático do gasto público, inclusive e especialmente em situações trágicas como a que passa atualmente o País".

Análise de André Lara Resende sobre a inconsistência técnica e o conflito de interesses na recente elevação da taxa Selic pelo Banco Central:
"Mas como justificar juros mais altos quando o PIB caiu mais de 4% no ano passado, corre sério risco de ter uma nova queda neste ano e o país tem quase 15% de desemprego aberto? Qual a razão para elevar os juros quando a pandemia atinge o seu auge e provoca uma verdadeira catástrofe social? Como explicar a defesa do teto dos gastos para não aprovar uma generosa ajuda emergencial assim como os recursos necessários para controlar a crise sanitária?
A proposta do Orçamento de 2021, que está no Congresso, corta recursos até mesmo para a saúde, enquanto aumenta para as emendas parlamentares.
(...) Não há como deixar de concluir que ou o Banco Central não está atuando como deveria para evitar movimentos especulativos, ou as pressões sobre o câmbio advêm da percepção de riscos políticos e institucionais. Riscos que certamente não serão revertidos pela alta dos juros.
Assim como é impossível encontrar uma justificativa fundamentada para negar recursos para a crise sanitária e cortar investimentos indispensáveis para a recuperação da economia, é também impossível encontrar lógica na defesa da alta dos juros. Elevar os juros desestimula o investimento, aumenta o custo da dívida e obriga a mais cortes de gastos essenciais, na tentativa de equilibrar o orçamento.
(...) Apesar de a ligeira alta da inflação ser decorrente de uma pressão externa transitória, o mercado financeiro elevou toda a estrutura a termo dos juros da dívida e passou a pressionar, com apoio do seu batalhão de economistas e analistas na mídia, para que o Banco Central elevasse os juros. O BC cedeu e subiu a taxa básica em 0,75 ponto percentual, acima do 0,5 esperado pelo mercado. Insaciável, o mercado agora espera uma nova alta de 0,75, ou mesmo de 1 ponto percentual, na próxima reunião do Copom. Já preveem a taxa perto de 6% no fim do ano.
O impacto fiscal de uma alta no custo da dívida é enorme. Uma elevação de 2% para 6%, numa dívida de 90% do PIB, equivale a 3,6% do PIB ao ano. Para efeito de comparação, o investimento público total nos últimos anos não chegou a 2% do PIB ao ano. Como a dívida é interna, em moeda nacional, detida por brasileiros, trata-se de uma transferência direta, equivalente a 3,6% do PIB, do Estado para o sistema financeiro e seus clientes que foram capazes de poupar e comprar títulos públicos.
Estranho que o sistema financeiro pressione pela alta dos juros? Trata-se de advocacia em causa própria, lobby, na melhor das hipóteses um caso de conflito de interesse, qualquer coisa, menos um argumento racional com sustentação teórica e evidência empírica.
(...) O aspecto técnico da gestão da dívida (...) dificulta a clara compreensão do absurdo que é a alta dos juros no contexto atual.
(...) É o crescimento da economia e da arrecadação que garante uma trajetória não explosiva da dívida. Para crescer e arrecadar, é preciso investir. Sobretudo, é preciso evitar que uma emergência como a da atual pandemia se prolongue e se transforme numa catástrofe sanitária e social. Essa é a verdadeira responsabilidade fiscal que a todos interessa".

As análises acima provam ser o orçamento da União de 2021 o maior ponto de confluência da iniquidade fiscal e dos erros sanitário-econômicos cometidos na gestão da pandemia pelo Brasil. É nesse orçamento inconstitucional, injusto e fictício que enterramos não só as centenas de milhares de mortos, mas também a esperança de alguma solução racional e republicana para a crise político-social em que nos encontramos.

Nada mudará enquanto houver créditos extraordinários manejados como cheque em branco pelo Executivo, emendas parlamentares para atender ao curto prazo eleitoral do Congresso e elevação de juros para os detentores de liquidez que têm na dívida pública o meio mais seguro e rentável de preservação da sua riqueza privada.

Milhares de brasileiros seguirão a morrer impunemente, sob esse orçamento que apenas expressa a síntese da nossa incivilidade.


[1] Comemoração que remonta à criação da Organização Mundial de Saúde em 7 de abril de 1948 (https://en.wikipedia.org/wiki/World_Health_Day).

 

*Élida Graziane Pinto é procuradora do Ministério Público de Contas do Estado de São Paulo, pós-doutora em Administração pela Escola Brasileira de Administração Pública e de Empresas da Fundação Getulio Vargas (FGV/RJ) e doutora em Direito Administrativo pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG).

   

 

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