Rumores sobre eventual proposta de emenda constitucional para supressão ou mitigação da estabilidade dos servidores públicos voltam ao debate nacional. Ainda que sem conhecer efetivamente qualquer proposta de alteração da Constituição – somente por PEC é possível mudar o regime jurídico da estabilidade – é oportuno debater o assunto em razão de sua relevância.
De pronto, enfrentemos alguns pensamentos comuns relativos à estabilidade no serviço público. Podemos fazer isso tentando identificar o que a estabilidade não é ou não permite para, posteriormente, tentar identificar o que é ou para que serve.
Estabilidade não impossibilita a demissão de servidores públicos que não cumprem seus deveres. Com efeito, o servidor público estável pode perder o cargo em virtude de sentença judicial transitada em julgado ou mediante processo administrativo em que lhe seja assegurada ampla defesa (art. 41, parágrafo primeiro, incisos I e II da Constituição Federal). Em casos de inassiduidade habitual, improbidade ou insubordinação grave em serviço, por exemplo, o servidor público pode ser demitido por intermédio do devido processo administrativo (art.132 e seguintes da Lei 8.112/90, aplicável à Administração Pública Federal). Sejamos sinceros e reconheçamos que a estabilidade dificulta, mas não impede que servidores desidiosos sejam desligados do serviço público. A dificuldade reside não propriamente no instituto da estabilidade, mas sobretudo nos excessos burocráticos e na omissão condescendente dos que possuem atribuições para o processamento.
Estabilidade não protege o servidor ineficiente, que entrega à sociedade desempenho abaixo do esperado. Além da possibilidade de enquadramento em algum tipo administrativo infracional que determine o início de processo para apuração e eventual demissão, há previsão específica de perda do cargo mediante procedimento de avaliação periódica de desempenho, assegurada ampla defesa (art.41, §1º, III da CF). O problema é que essa avaliação periódica de desempenho deverá ser tratada por lei complementar e que o Legislativo não se dedica ao assunto desde 1998, época de promulgação da Emenda Constitucional nº 19. A culpa não é da estabilidade, mas do descaso do Congresso Nacional[1].
Estabilidade não engessa o volume de gastos com pessoal, impedindo redução de despesas que comprometam o equilíbrio das contas públicas. O servidor estável pode perder o cargo em razão de excesso de gastos do respectivo ente desde que, primeiramente: a) sejam reduzidas em pelo menos vinte por cento as despesas com cargos em comissão e funções de confiança e b) sejam exonerados os servidores não estáveis. Após esse percurso, se as medidas “não forem suficientes para assegurar o cumprimento da determinação da lei complementar referida neste artigo, o servidor estável poderá perder o cargo, desde que ato normativo motivado de cada um dos Poderes especifique a atividade funcional, o órgão ou unidade administrativa objeto da redução de pessoal” (art.169, §4º da Constituição Federal).
Finalmente, a estabilidade não cristaliza os cargos e carreiras, impedindo adequações necessárias à evolução das necessidades públicas em razão da mudança dos processos tecnológicos, por exemplo. Cargos podem ser extintos, e os servidores estáveis ficam em disponibilidade, com remuneração proporcional ao tempo de serviço, até seu adequado aproveitamento em outro cargo (art.41, §3º da Constituição).
A estabilidade dos servidores públicos esteve presente em todas as Constituições brasileiras. Seria esse fato mera comprovação da força da “burocracia administrativa”, contra a qual não ousariam se insurgir parlamentares? Seria a estabilidade um mero privilégio de elites do funcionalismo público que se organizariam para mantê-la, a todo custo e à toda prova?
Graciliano Ramos, um de nossos maiores escritores, foi político. Em 1927, foi eleito Prefeito da pequena Palmeira dos Índios, em Alagoas, e legou para a posteridade seus relatórios de gestão, comentados em livro saboroso escrito pelo também alagoano professor Fábio Lins Carvalho. Graciliano já denunciava há quase um século a existência de poderes paralelos ao poder oficial, ou mesmo estruturas informais de poder incrustados na própria estrutura da Administração Municipal. Em particular, Graciliano denunciava o coronelismo, forma de poder concentrado (envolvendo os poderes econômico, social e político) detido pelas elites locais, especialmente associadas aos proprietários rurais.
“Antecipando-se em várias décadas as conclusões de Raymundo Faoro (autor de Os donos do poder) e de Victor Nunes Leal (que escreveu Coronelismo, Enxada e voto), o mestre Graça já sabia muito bem da extensão da autoridade dos “coronéis” e como isso era um obstáculo à gestão pública comprometida com valores como a impessoalidade e a igualdade”[2].
A estabilidade é instituto jurídico com vocação instrumental, concebido para garantir o desempenho impessoal do servidor público. Trata-se de meio imaginado para impedir que a influência política (notadamente político-partidária) comprometa o desempenho da missão de bem servir o público, por temor de qualquer tipo de represália ou consequência negativa.
Teresa Cristina Padilha de Souza, em dissertação de mestrado, bem resume a questão:
“o principal objetivo da estabilidade é garantir imunidade aos servidores em relação a perseguições políticas e demissões injustas. O servidor público precisa sentir-se seguro para poder ter como prioridade única prestar serviços à sociedade, e não a seus superiores hierárquicos, por pressão ou visando a obtenção de simpatias ou privilégios. Protegendo o servidor, a estabilidade está protegendo a sociedade, impedindo que os órgãos do setor público se transformem em "cabides de emprego" e palcos de nepotismo, clientelismo e cartorialismo. Além disso, a estabilidade tem como preceito básico impedir a descontinuidade administrativa que pode acarretar, na maioria dos casos, a perda da memória técnica e cultural das organizações e do próprio Brasil. Diante dessas premissas, fica também evidenciada a forma como a estabilidade atende perfeitamente aos princípios weberianos de hierarquia e impessoalidade, caracterizados como preceitos básicos de uma administração voltada para a eficiência e a racionalidade. Sob essa ótica, começam a fazer sentido os motivos para a participação da estabilidade em todos o dispositivos legais relativos ao regimento dos servidores públicos. Começam também a transparecer as razões pelas quais, apesar de ter contrariado todo o discurso neo-liberal de enxugamento da máquina burocrática, a Constituição de 1988 retomou todo o funcionalismo público brasileiro ao regime estatutário, trazendo consigo a exigência de concurso público para ingresso nas carreiras do setor, e tomando esses servidores estáveis após dois anos de estágio probatório”[3].
Um fiscal de rendas pode ser pressionado pelo chefe para fiscalizar e autuar empresas que não tenham contribuído para a campanha do atual Chefe do Executivo. Um agente ambiental pode ser aconselhado a fazer vistas grossas para um contundente desmatador que é parente de um Deputado. Um professor de universidade pública pode ser perseguido porque tem convicções econômicas liberais, da mesma forma que um professor de escola pública pode ser ameaçado por suas opiniões que o ligam à esquerda.
Juntamente com outros instrumentos, a estabilidade configura sistema de garantia reconhecidos ao servidor em prol da sociedade: o servidor público sabe que, exercendo corretamente e de forma impessoal suas atribuições, não será demitido, punido, não terá seu salário reduzido e – eventualmente – terá até direito a uma aposentadoria justa. Só cedem os que querem; não há razão para qualquer temor jurídico-político. Se essas garantias são utilizadas por alguns como escudo para não trabalhar ou fazê-lo de forma ineficiente, o ordenamento jurídico prevê outros remédios. Só não dá para culpar o remédio pelos excessos do paciente.
Derrubados os espantalhos, precisamos reconhecer que é preciso avançar na profissionalização da Administração Pública. A estabilidade merece ser reavaliada, em seus requisitos e exigências, desde que não se esqueça a razão de sua existência. O alcance da estabilidade, por exemplo, deve ser debatido para que seja possível concluir quais funções efetivamente necessitam desta garantia enquanto instrumento de desempenho impessoal, sem que seja necessariamente considerada como regra geral. De outro lado, não é possível pensar em quebra da estabilidade como instrumento para redução de despesas com pessoal, assim como não é adequado concebê-la de forma totalmente dissociada da avaliação de desempenho. Nesse particular, precisamos também refletir sobre a construção de um sistema de avaliação de desempenho adequado, justo e impessoal[4], que aproveite, mas não se limite a reproduzir os métodos privados, em razão da diversidade de propósitos e realidades. Finalmente, antes de eleger o servidor e a estabilidade como os vilões do momento, é preciso ter clareza de propósitos e coragem para enfrentar a multidão de cargos em comissão, muitos dos quais com atribuições que não possuem qualquer característica de direção, chefia ou assessoramento, como exige a Constituição[5].
Estabilidade não é privilégio – os que assim a consideram, se servidores, precisam abrir os olhos; se chefes, precisam assumir suas responsabilidades.
[1] A esse respeito, confiram o interessante artigo de Ana Carla Abrão, Armínio Fraga Neto e Carlos Ari Sundfeld: https://economia.estadao.com.br/noticias/geral,avaliar-desempenhos-e-reformar-o-brasil,70003047723
[2] Graciliano Ramos e a administração pública: comentários aos seus relatórios de gestão à luz do Direito Administrativo moderno / Fábio Lins de Lessa Carvalho. Belo Horizonte: Fórum, 2017.
[3] Dissertação intitulada “Mérito, estabilidade e desempenho: influência sobre o comportamento do servidor público”, defendida perante a Escola Brasileira de Administração Pública – FGV em 2002.
[4] A esse respeito, a opinião da professora Vívian Valle: https://www.conjur.com.br/2019-out-06/opiniao-quem-ganha-fim-estabilidade-servico-publico
[5] Tratei do tema neste mesmo espaço, há alguns anos: https://www.conjur.com.br/2015-jul-09/interesse-publico-administracao-cargos-confianca-nao-confiavel
Fabrício Motta é conselheiro do TCM-GO e professor da Universidade Federal de Goiás (UFG).