A aprovação do texto substitutivo do PLP 149/2019 parece ter sido (mais um) ponto de discórdia na relação entre o executivo federal e os governos subnacionais. O texto — que prevê uma recomposição completa da perda de receitas de ICMS e ISS por parte da União por um período de seis meses — foi imediatamente rechaçado pelo Ministério da Economia[2]. Inclusive, nos bastidores, já é dado como certo um veto presidencial ao texto, caso este seja aprovado também no Senado.
De acordo com o Ministério da Economia, o tema principal do texto aprovado no último dia 13 de abril(o “seguro-receita”) apresenta — fora outras questões operacionais — dois problemas principais: 1) ele geraria uma redução dos incentivos no recolhimento de tributos por estados e municípios, ou ainda,um estímulo à concessão de benefícios fiscais (renúncia), uma vez que qualquer redução de receita estaria garantida pela União; e 2) a distribuição (baseada na arrecadação de ICMS e ISS de 2019) privilegiaria os entes “mais ricos” da federação.
Uma grande controvérsia se formou entre economistas e especialistas em contas públicas por conta do primeiro item. Enquanto, por um lado, alguns defendem a posição do governo federal, dizendo que isso é um “cheque em branco” em favor de estados e municípios; por outro lado, alguns argumentam que os entes subnacionais são os responsáveis pelo enfrentamento direto dos problemas decorrentes da pandemia (95% da execução de despesas públicas de saúde é realizado por estados e municípios) e, ao mesmo tempo, estes são os que mais estão sofrendo com a perda de receitas por conta da crise econômica e sem ter a possibilidade de se endividar, como a União.
O debate parece ter ficado tão centrado nessa questão, que o segundo ponto — a forma de partilha do seguro-receita — passou quase despercebido. No entanto, esse ponto é, possivelmente, mais importante do que a discussão do tamanho do seguro, pois ele guarda consigo algumas questões sobre a estratégia política do governo no enfrentamento à crise do Covid-19.
O objetivo primordial do seguro-receita previsto no PLP 149/2019 é garantir um patamar mínimo de recursos para os entes subnacionais, para que estes possam executar suas funções e cumprir suas obrigações ordinárias. Deve-se ter em mente que estados e municípios ainda possuem políticas públicas e contratos que precisam ter andamento, independente da ocorrência da pandemia. Não é preciso ser especialista em economia para enxergar a importância da manutenção do funcionamento da máquina pública, inclusive sob a ótica macroeconômica, de demanda agregada, haja vista o fato de estados e municípios responderem por 78% das compras públicas de bens e serviços[3] e 88% dos servidores do setor público[4].
Além do seguro-receita, o governo federal deveria prezar por repasses adicionais fundo a fundo (SUS e SUAS), de forma extraordinária e discricionária, mirando naquelas localidades mais atingidas pela doença (epicentros e seu entorno).
Tendo em vista o objetivo do seguro, a melhor medida para partilhar esse recurso é justamente a distribuição dele no período imediatamente anterior à pandemia. A realização de receitas de ICMS e ISS de 2019 é, assim, a melhor representação da distribuição do seguro entre os entes. Dada a elevada rigidez orçamentária presente no setor público brasileiro e alto grau de vinculação de receitas para determinadas despesas, a distribuição de receitas (ordinárias) de 2019 atenderia razoavelmente bem a distribuição de despesas (ordinárias) de 2020.
A argumentação do Ministério da Economia de que essa forma de partilha iria beneficiar os estados e municípios mais ricos em detrimento dos mais pobres é tão falaciosa que nem se preocupa em ponderar que o seguro não foi pensado para promover uma redistribuição territorial de recursos, mas apenas para que todos os entes não percam tanto com a crise. Se os entes mais ricos são os maiores beneficiários do seguro, é pelo fato destes também serem os maiores prejudicados pela crise econômica, refletida primordialmente na queda rápida da arrecadação dos dois tributos vinculados ao consumo de bens e serviços (ICMS e ISS). Uma eventual distribuição pelo critério populacional, como defendido pelo governo, geraria situações em que alguns entes seriam compensados por uma inexistente frustração de receitas, fugindo completamente ao objetivo do seguro. Isso se daria em locais que arrecadam relativamente pouco (ou nada) de ICMS e ISS.
O seguro-receita de ICMS e ISS teria ainda a vantagem de promover um equilíbrio na distribuição horizontal de recursos extraordinários federais destinados aos governos subnacionais como consequência da crise: se a distribuição de R$ 16 bilhões via FPE/FPE já ajudou as localidades que mais dependem dessa fonte, agora uma distribuição via ICMS/ISS ajudaria as localidades que mais dependem de recursos próprios. Qualquer outro critério de partilha resultaria em desequilíbrio distributivo: alguns estados e municípios poderiam se deparar com recursos em excesso, enquanto outros teriam recursos de menos e ficariam desprotegidos para enfrentar a crise.
A proposição de partilha desse recurso lançada pelo Ministério da Fazenda joga por terra toda a lógica envolvida no seguro-receita: o seguro foi pensado para garantir que os entes pudessem, ao menos, ter o mesmo nível de receita (de ICMS e ISS) que tiveram em 2019. Se a lógica de distribuição não replicar exatamente a distribuição de 2019, então entraríamos em uma situação de redistribuição horizontal de receitas num jogo de soma zero. E, como se sabe bem, pelo histórico de conflito federativo no Brasil, isso nunca acaba bem. Com a abertura da possibilidade de haver ganhadores (e perdedores), o governo federal aposta na promoção do embate federativo entre entes da mesma esfera de governo no intuito de fragmentá-los e enfraquecer uma proposta que era apoiada massivamente por estados e municípios. Ao vender a esperança de que alguns entes podem ganhar recursos em meio à crise (em detrimento de outro, naturalmente), o Ministério da Economia tenta trazer para o seu lado parte dos governadores e prefeitos.
Essa tentativa de quebrar a coesão subnacional (ainda que sob o risco de enfraquecer a federação) visa, em última instância: 1) preservar os preceitos liberais do Ministério da Economia, que tem resistido com todas as forças a se endividar para ajudar a recuperar a atividade econômica; e 2) melhorar a posição política estratégica do presidente Bolsonaro, na medida em que os governos estaduais e municipais, quando confrontados com a falta de recursos, passariam a se ver obrigados a “abrir a economia” – algo desejado pelo presidente desde o início da adoção de medidas restritivas (isolamento social) por governadores e prefeitos.
Não custa recordar que, segundo a percepção do presidente, o remédio para a doença (isolamento) causaria mais danos do que a própria doença, pois ele afetaria demasiadamente a economia. Desde o início da crise, suas falas têm girado em torno de apresentar uma (falsa) dicotomia entre saúde e economia, e atribuir aos governadores e prefeitos os eventuais efeitos socioeconômicos decorrentes do isolamento. Uma fragmentação da federação nesse momento, seria uma forma de se obter, via Ministério da Economia, o que não se conseguiu via Ministério da Saúde.
A preocupação com uma distribuição justa de recursos dentro do território nacional é um tema de suma importância para a promoção de um pacto federativo verdadeiro, com coesão, harmonia e relações mais equilibradas entre os entes. Contudo, levantar essa agenda em meio a uma pandemia, na qual se discute prioritariamente medidas emergenciais, não parece uma atitude tecnicamente responsável. Ao contrário, parece tentar incitar a descoordenação e atrapalhar o diálogo entre estados e municípios em um momento que eles parecem muito unidos em torno do combate à pandemia.
[2] Disponível em: https://bit.ly/2VE6KX5 .
[3] Fonte: https://bit.ly/3cgrNpi .
[4] Fonte: http://dapp.fgv.br/o-perfil-do-funcionalismo/ .
Kleber Pacheco de Castro é economista, consultor e sócio da Finane Análise e Consultoria Econômica, doutor em Economia pela Uerj e mestre pela UFF.