O que era para ter sido uma noite de celebração da literatura produzida no Rio Grande do Sul, terminou com o gosto amargo da revolta e indignação. Ao menos para a escritora Eliane Marques, autora do livro “Louças de família”, premiado como melhor narrativa longa na quinta-feira (12/12), durante evento da Academia Rio-Grandense de Letras.
A reviravolta durante a solenidade de premiação se deveu à fala do presidente da entidade, Airton Ortiz. Em seu discurso, ele enalteceu a trajetória da Academia Rio-Grandense de Letras, relacionando-a com as raízes da imigração alemã e italiana, o que não teria ocorrido em outros estados do Brasil, segundo Ortiz, devido a uma origem ligada com a escravidão.
A fala foi como um soco no estômago de Eliane, que já estava desconfortável no ambiente, desde sua chegada, por ser a única mulher negra na cerimônia de premiação. A situação se tornou ainda pior por causa da reação do público presente – ou a falta de reação. Ao constatar o silêncio da plateia diante da fala racista do presidente, a escritora não se conteve e subiu ao palco exigindo retratação. O vídeo de sua crítica rapidamente se espalhou nas redes sociais.
Ainda na mesma noite, Ortiz se desculpou e, no dia seguinte, emitiu uma nota pública dizendo que sua fala racista aconteceu porque não conseguiu “completar o raciocínio”.
Eliane conta que, no outro dia, depois do evento, sentiu-se sofrendo os efeitos da situação. Um sentimento de culpa lhe tomou os sentidos. Colocou-se em dúvida se deveria mesmo ter dito o que disse e até mesmo em dúvida sobre aquilo que aconteceu.
“Isso também é um efeito do racismo. A pessoa negra que reagir, depois se sente nesse lugar incômodo, nesse lugar medroso, nesse lugar que não quer nem sair de casa pelo que aconteceu. Então, isso também é muito ruim. É preciso que as pessoas brancas se levantem e falem com seus pares, porque são seus pares brancos que criaram o racismo e que estão sustentando o racismo ainda hoje”, afirma a escritora, em entrevista ao Sul21 concedida na última terça-feira (17/12).
Leia a íntegra da entrevista:
Sul21: Que tipo de reflexão é possível fazer quando isso acontece na mesma noite em que uma escritora negra é premiada como melhor livro?
Eliane: Isso faz parte da ambiguidade que caracteriza o contrato racial. Se, por um lado, em razão de toda uma insurgência da sociedade, essas instituições se veem obrigadas a reconhecer algum valor, por outro lado, por não querer reconhecer esse valor, elas retiram o valor a partir desses discursos, dessas afirmações.
Então, por um lado: “Eu concedo, eu reconheço, mas como eu não quero conceder, como eu não quero reconhecer, porque isso coloca em risco o meu lugar de privilégio na sociedade, eu vou tirar por um discurso, por uma afirmação”.
A ambiguidade é característica do contrato racial.
Sul21: Além da fala racista do Airton Ortiz, a postura passiva do público, que não reagiu, uma plateia supostamente intelectualizada, foi também o que mais te incomodou?
Eliane: Eu considero que tanto a fala do presidente da Academia Riograndense de Letras quanto o silêncio, especialmente dos acadêmicos e acadêmicas que ali estavam, conformam o mesmo problema que é o racismo brasileiro, expresso nisso que se chama de contrato racial ou, como a Cida Bento chama, o pacto narcísico da branquitude.
Essa situação, conformada por essas duas dimensões, a fala e o silêncio, dizem dessa sociedade brasileira ou de parte dessa sociedade brasileira, que ainda se sente confortável em trazer as falas violentas e racistas, como também se sente confortável em ficar no silêncio ao ouvir essas falas, porque essas falas também contemplam essa parcela da sociedade. O presidente não estava falando sozinho, ele não era um homem com “tais e tais características e por isso disse aquilo”, não, ele falou parte do que a sociedade brasileira pensa.
Parte da imprensa está tratando como polêmica. Como assim polêmica? Não se trata de polêmica, se trata de mais do mesmos se trata do racismo brasileiro expresso numa cerimônia de entrega de um prêmio, sim, por pessoas intelectualizadas. Então nós vemos que mais ou menos conhecimento, não está diretamente relacionado com ser mais ou menos racista.
O mal estar está relacionado a esse conjunto de situações que diz de uma única coisa, o que a Lélia (González) poderia chamar da “neurose brasileira”, que é esse racismo afirmado e depois negado, justificado, explicado.
Sul21: O que lhe pareceu depois a nota que o Airton Ortiz deu no dia seguinte, com sua explicação?
Eliane: O senhor presidente se desculpou no momento do evento, mas o que ele disse simplesmente reforçou esse ideário de que tudo que é bom foi construído pela Europa e pelos europeus, aqueles que não são europeus, que não são italianos, que não são alemães, não puderam construir nada. É isso que estava na fala do senhor presidente, é esse discurso reiterado da sociedade brasileira que ali estava.
Algumas pessoas ficam: “Não, mas ele disse uma verdade”. Não, ele não disse verdade nenhuma, ele disse simplesmente o racismo que impera no Brasil. É o que a professora Denise vai dizer de que a raça, no Brasil, define uma proximidade ou uma distância da Europa. Aquilo que é próximo da Europa tem valor. Então os alemães têm valores, o italiano tem valor, e o que está supostamente distante não tem valor. É isso que está ali, é isso que algumas pessoas não conseguem ouvir ainda porque estão imersas nesse pensamento racista.
Capa do premiado livro de Eliane Marques. Foto: Reprodução
Sul21: O protagonismo recente de escritores e escritoras negras no Brasil, a publicação no mercado nacional de autores africanos que há algumas décadas não tinham visibilidade, isso tem incomodado a classe de escritores brasileiros?
Eliane: Sim. Acho que um ponto básico é que todo esse mercado editorial se insere num sistema capitalista, em que se concebe uma competição e que existem lugares para poucos. Até determinado momento histórico, esses lugares no mercado editorial estavam reservados para um grupo branco e geralmente masculino. Como diz a professora Regina Dalcastagnè na pesquisa que ela fez sobre o mercado editorial no Brasil, quando um outro grupo de mulheres, de mulheres negras, de homens negros, começa a acessar esse mercado, coloca em risco essas posições já assentadas. Isso gera uma reação, gera medo. “Ah, esses negros e negras agora pensam que podem escrever, que podem ocupar aquele lugar que nós ocupávamos.” É isso, pelo menos, um dos aspectos do que ocorre. A escrita que era reservada a uma branquitude, agora se desloca nesse lugar de reserva. Inclusive para pessoas indígenas. Então, isso gera uma reação, que aparece por meio desses atos e depois por essas desculpas, que são mais esfarrapadas ainda.
Sul21: É comum quando acontece um episódio como esse, falar-se da necessidade de incluir os brancos no combate ao racismo, então o que mais pode ser feito para que os brancos se levantem ao ouvir falas racistas?
Eliane: Esse episódio é uma manifestação desse racismo estrutural que assola as pessoas negras desde o seu nascimento. Às vezes, ele aparece assim, por essas falas, e então nos permite reagir de modo mais direto, mas ele está sempre aí. Quando cheguei naquele lugar, já me apavorei porque vi apenas pessoas brancas sentadas no auditório. Havia um ou outro homem negro, mas não havia nenhuma mulher negra. Então, uma instituição que não se preocupa com isso já está parada no tempo, porque é preciso se preocupar com a inclusão dentro dos seus espaços e dos seus discursos.
Mas o que fazer? Talvez as pessoas brancas precisem se reunir para dizer o que fazer. Não somos nós, pessoas negras, que vamos dizer: “Façam isso ou façam aquilo”. Não me parece que é por aí. As pessoas negras já fizeram muito, trabalhamos muito, estamos toda hora falando, dizendo, realizando, escrevendo e estudando.
O que as pessoas brancas estão fazendo? Querem que nós sigamos trabalhando para elas, dizendo o que elas precisam fazer? Não! Elas precisam se reunir e se levantar contra esse racismo, porque o racismo assola também as pessoas brancas, pelo menos aquelas pessoas brancas que querem uma sociedade menos desigual, menos injusta e mais democrática.
Aquilo que aconteceu no evento, não aconteceu com a Eliane, aconteceu com a sociedade, aconteceu com aqueles que querem uma sociedade melhor. Se nós queremos uma sociedade melhor, não podemos ouvir calados e caladas esse tipo de discurso. Eu não vou mais ouvir. As pessoas costumam dizer que sou brava. Não sou brava. Eu simplesmente reajo a uma situação de violência. Não queiram que eu reaja àquela situação de violência com flores. Não vou reagir com flores, vou reagir com discurso.
Sul21: Era pra ter sido uma noite boa, você foi premiada, como fica agora olhar para o troféu?
Eliane: Uma das minhas editoras, a Rafaela Lamas, da Autêntica Contemporânea, me perguntou isso. Porque “Louça de família” ganhou o Prêmio São Paulo de Literatura, como romance de estreia, é um prêmio nacional dos mais importantes. Depois ganhou da Academia de Letras do Brasil e da Academia Rio Grandense de Letras. Foi finalista do Minuano e foi finalista do Prêmio Ages. Enfim, é um livro que está falando da sociedade brasileira, que está correndo pelos clubes de livro e clubes de leitura, não é um livro que, digamos, excepcionalmente recebeu um prêmio. Não, ele vem sendo reconhecido pela sua qualidade literária.
Contudo, esse prêmio não é uma conquista minha, assim como aquela fala não foi uma fala apenas minha, foi uma fala de parte da sociedade brasileira. Então, o prêmio nasce do trabalho de duas editoras, que são a Rafaela Lamas e a Ana Elisa dos Santos, da própria Autêntica Contemporânea, do meu trabalho como escritora, dos revisores, das pessoas que me ajudaram a construir esse livro e, principalmente, do trabalho das nossas antepassadas e nossos antepassados.
Esse livro “Louça de família” é deles, esse livro é delas, fala dessa história. Esse livro não é meu, são eles e elas que recebem esse prêmio. Então, não vou devolver nada do que é a conquista deles, do que é conquista delas. Se a Academia quiser, eu acredito que não, ela que me retire o prêmio, mas eu não vou ceder nada. Nós, pessoas negras, não vamos ceder nada que é fruto do nosso trabalho.
Sul21: A Feira do Livro de Porto Alegre este ano teve uma programação paralela com autores e autoras negras, uma iniciativa que foi criticada por fazer uma divisão com a outra programação. O que lhe pareceu isso?
Eliane: Entendo como super positiva uma curadoria negra na feira do livro porque essa curadoria negra pode pensar melhor, indicar melhor os autores e autoras negras, porque geralmente é alguém que está acompanhando essa literatura. Agora, que esta curadoria negra esteja apartada dentro da Feira do Livro, isso não me parece positivo.
Aí entra naquele problema que é os brancos estarem de um lado e então ninguém concorre com eles, e os negros estão de outro lado, numa programação absolutamente separada. É preciso que autores brancos, negros e indígenas estejam conversando lado a lado. Estamos falando na nossa literatura também da sociedade brasileira.
Quando você pensa em autoria negra ou literatura negra ou literatura afro-brasileira, seja qual for o conceito que se adote, como se nós estivéssemos falando sempre de nós, não, nós estamos falando da sociedade brasileira, de uma outra dimensão que não é a dimensão da branquitude, que não é dimensão do privilégio, que é a dimensão da empregada doméstica, que é dimensão do escravizado, que é a dimensão daquele que não tem o seu emprego, é a dimensão daquele que não estava no apartamento nos Estados Unidos que pode escrever de lá e dizer das suas conquistas. Nós estamos falando de outro modo da sociedade brasileira