Em 7 de abril de 1948, foi fundada a Organização Mundial da Saúde (OMS), daí decorre o motivo de se comemorar globalmente a saúde no dia de hoje. Por ocasião do septuagésimo aniversário da entidade em 2018, Tedros Adhanom Ghebreyesus, diretor-geral da OMS1, bem sintetizara sua nuclear razão de existir:
“Uma boa saúde é a coisa mais preciosa que a pessoa pode ter. [...] Quando estão saudáveis, as pessoas podem aprender, trabalhar e sustentar a si mesmas e suas famílias. Quando estão doentes, nada mais importa. Famílias e comunidades ficam para trás. É por isso que a OMS está comprometida em garantir uma boa saúde para todas e todos.”
Infelizmente, a agenda multilateral não foi suficiente para convencer os países acerca da prioridade que a saúde deveria ter nos orçamentos públicos nacionais. Houvesse convencimento racional e equitativo sobre a essencialidade da saúde, seria cumprida efetivamente a sua condição de direito social, mediante serviço público universal, que, por seu turno, deveria estar amparado por custeio fiscalmente progressivo conforme o nível da arrecadação estatal.
Em 2020, contudo, a realidade ultrapassou a via diplomática e a pandemia do coronavírus (Covid-19) impôs duramente a premência da resposta sanitária em caráter sistêmico. O risco de milhões de mortes em curto espaço de tempo tem desmascarado – internacionalmente – a insuficiência estrutural e as profundas desigualdades de se relegar a saúde ao campo da mera oferta mercadológica de bens e serviços privados.
No Brasil, este Dia Mundial da Saúde nos oferece evidência empírica irrefutável de que vivemos, há três décadas, um paulatino e persistente processo de erosão dos pilares financeiro e orgânico do direito fundamental à saúde.
Particularmente, tenho denunciado há alguns anos esse Estado de Coisas Inconstitucional no SUS2, que precisa ser controlado em moldes análogos aos da ADPF 347, relativa ao sistema prisional brasileiro. No caso da política pública de saúde, vemos omissões e restrições interpretativas, sobretudo, no piso federal em saúde e também por meio de fraudes contábeis e déficits de aplicação em alguns Estados. Trata-se de algo tão antigo e judicializado que o STF reconheceu haver repercussão geral (Tema 818) no debate sobre o “controle judicial relativo ao descumprimento da obrigação dos entes federados na aplicação dos recursos orçamentários mínimos na área da saúde, antes da edição da lei complementar referida no art. 198, § 3º da Constituição”.
A sobrecarga de custeio tem sido suportada, em larga escala, pelos municípios e, indiretamente, pelos próprios cidadãos que convivem com a precarização operacional e financeira do SUS e, por isso, passam a ter de buscar, cada vez mais, a eficácia do direito à saúde na via judicial. Trata-se de uma verdadeira guerra fiscal de despesas3 que frustra – concomitantemente – duas cláusulas pétreas: o pacto federativo e o próprio direito à saúde.
Vale lembrar que, desde a redação originária da Constituição de 1988, ocorreram diversas mudanças normativas que mitigaram profundamente o patamar federal de gasto mínimo em saúde. O marco inicial – a partir de onde se desenrola a trajetória tendente à regressividade do piso federal no setor – remonta ao art. 55 do ADCT, que previa a alocação mínima de trinta por cento do orçamento da seguridade social para o “setor de saúde”.
Tal proporção nunca foi cumprida de fato no ciclo orçamentário federal. À luz do art. 2º, II, da Lei 13.978/2020, que estima a receita e fixa a despesa da União para o exercício financeiro corrente, o comando do art. 55 do ADCT – se estivesse em vigor – praticamente dobraria o patamar mínimo de gastos da União em saúde (cerca de R$ 271,5 bilhões, ao invés de R$ 125,234 bilhões).
Contudo, tal divisão equitativa nunca ocorreu, muito antes pelo contrário. Houve dois motivos para a fragilização estrutural do orçamento da seguridade social e, dentro dele, do dever de financiamento adequado da política pública de saúde pela União. São eles: a desvinculação parcial de receitas (DRU) e a segregação das contribuições patronais e laborais para custeio exclusivo da previdência social.
A “perenização” da DRU se verifica com sua instituição por meio da Emenda Constitucional de Revisão n. 1/1994, e suas sucessivas prorrogações, por meio de sete emendas ao ADCT, para estender sua vigência até 31/12/2023 (EC’s n. 10/1996; 17/1997; 27/2000; 42/2003; 56/2007, 68/2011 e 93/2016).
Ao longo dos 29 anos de vigência da DRU, está mitigado o escopo da garantia de orçamento específico – com fonte de custeio própria – para a seguridade social, no que se incluem as contribuições sociais como espécie tributária autônoma e não suscetível de repartição federativa (art. 165, §5º, III, c/c art. 195, ambos da CR/1988). A perpetuação da DRU via ADCT vulnera os arts. 167, IV, 195, 196 e 198 da CR/1988, ao faticamente dar causa à insuficiência de recursos para o custeio constitucionalmente adequado dos direitos sociais (aqui, em especial, o direito à saúde) amparados por diversas formas de vinculação de receita e/ou despesa, em rota de lesão aos princípios da vedação de retrocesso e vedação de proteção insuficiente.
Quanto à segregação de receitas, a EC 20/1998, por meio da alteração do inciso XI do Art. 167, vinculou à previdência social parcela significativa das contribuições sociais (art. 195, inciso I, “a” e inciso II da CF), apartando saúde e assistência do alcance da sua destinação. A partir daí, foram segregadas fontes constitucionais específicas para a previdência social, donde foram excluídas saúde e assistência da cobertura sistêmica que as amparava no Orçamento da Seguridade Social. Daí, emergiu uma disputa fratricida entre as três áreas por causa das fontes de receitas vinculadas, haja vista o caráter contratual-sinalagmático das contribuições previdenciárias, em detrimento da solidariedade no financiamento da seguridade social como um todo.
As fragilidades trazidas pela DRU e pela segregação de fontes de custeio da EC 20/1998, direta ou indiretamente, deram causa ao processo legislativo que culminou com a edição da EC 29/2000, para assegurar vinculação de gasto mínimo para a saúde pública brasileira. Como a EC 29 delegou à lei complementar a definição dos percentuais de aplicação mínima de recursos públicos em ASPS, consumou-se mora legislativa de doze anos até a vinda da pertinente regulamentação, enquanto se obedecia ao regime transitório constante do art. 77 do ADCT.
Apenas com a Lei Complementar n. 141/2012, definiu-se em norma permanente, suscetível de revisão quinquenal, o regime de gastos mínimos em ações e serviços públicos de saúde, muito embora, do ponto de vista de distribuição federativa do seu custeio, nada tenha sido alterado em relação ao citado dispositivo do ADCT. Ou seja, foram mantidos os patamares de 12% da receita de impostos e transferências para os Estados, 15% para os Municípios e o valor do ano anterior acrescido da variação nominal do produto interno bruto – PIB para a União.
Houve fixação de critério distinto e específico para o nível central que não se aplicava aos entes subnacionais. Desde 2000 e, portanto, ao longo da vigência da EC n. 29, o piso federal em ASPS não guardou correlação com o comportamento da receita da União – essa progressiva ao longo dos anos –, daí é que decorreria grande parte do problema de subfinanciamento crônico da saúde pública brasileira e da regressividade proporcional do gasto federal no setor.
Muito embora um novo piso mínimo federal tenha sido estabelecido com a promulgação da EC n. 86/2015, tal norma esvaziou, direta ou indiretamente, sua alegada progressividade na forma de de um subpiso para 2016 inferior proporcionalmente ao nível de gasto realizado em 2015, como se depreende do seguinte excerto da tabela constante do relatório resumido de execução orçamentária da União de 2020:
Além dessa redução na equação de financiamento, o arranjo promoveu estagnação do avanço do SUS no Brasil. O art. 3º da EC 86/2015 determinava que até mesmo os recursos oriundos da exploração do petróleo e gás natural seriam contabilizados como gasto mínimo da União, ao invés de operarem como acréscimos a ele, em dissonância com a Lei 12.858/2013.
O descumprimento do piso federal em saúde deu ensejo à rejeição do relatório anual de gestão de 2016, do Ministério da Saúde, por meio da Resolução n. 551, de 6 de julho de 2017, do Conselho Nacional de Saúde. Todo esse contexto de fragilidade jurídica antecedeu e justificou a concessão da medida cautelar na ADI 5595, suspendendo a eficácia dos arts. 2º e 3º da Emenda 86/2015, para impor à União o dever de progressividade de custeio, conforme proporção equitativa da sua arrecadação (15% da RCL, ao invés de 13,2%).
A esse respeito, vale retomar aqui excerto da medida cautelar concedida pelo Ministro Ricardo Lewandowski nos autos da ADI 5595, que firmou, com indubitável clareza, o princípio da vedação de retrocesso e, portanto, resgatou o dever de progressividade no custeio mínimo do direito fundamental à saúde nos seguintes termos:
“[...] a ocorrência de reforma constitucional que vise ao aprimoramento dos direitos e garantias fundamentais é medida desejável de atualização dos fins e preceitos da CF, mas alterações que impliquem retrocesso no estágio de proteção por eles alcançado não são admissíveis, ainda que a pretexto de limites orçamentário-financeiros.”
Infelizmente, contudo, no interregno do exame pelo STF da ADI 5595, foi promulgada a Emenda 95/2016, que alterou nova e abruptamente o regime jurídico do piso federal em saúde, congelando-o em valores reais ao patamar aplicado em 2017 e assegurando mera correção monetária durante o longo período de 2018 a 2036. Aqui emerge, portanto, a mais recente fronteira de defesa do financiamento constitucionalmente adequado do direito à saúde: necessidade de declaração da inconstitucionalidade do art. 110 do ADCT.
O longo elenco acima de retrocessos quantitativos em sentido contábil-formal demonstra que é preciso fixarmos a irredutibilidade do rol de obrigações materiais que configuram proteção suficiente do direito à saúde. O piso constitucional não é apenas equação matemática que vincula determinado volume de recursos a um conjunto aleatório de despesas. Há conteúdo e finalidades substantivas a serem cumpridos por meio do dever de aplicação mínima de recursos em saúde, dentro de um arranjo federativo que prima pela redução das disparidades regionais e pelo rateio equilibrado das responsabilidades e receitas entre os entes.
Para fins do art. 196 e de toda a governança federativa do SUS, é imprescindível que haja rateio federativo dos recursos com o enfoque do art. 198, §3º, II (progressiva redução das disparidades regionais), o que foi parcialmente regulamentado no art. 17, §1º da LC 141/2012. Daí é que emerge a pactuação das obrigações e responsabilidades de cada ente da federação no SUS por meio da Comissão Intergestores Tripartite (CIT), e aprovada pelo Conselho Nacional de Saúde, como primária fonte do que deveria ser o conteúdo material do piso em ações e serviços públicos de saúde, ao que se somam os planos previstos na legislação sanitária.
O problema é que o pactuado, do ponto de vista da rede de serviços já contratados no SUS, dos repasses fundo-a-fundo e dos programas para fins de transferências voluntárias, tem excedido, em valores monetários, o piso federal estritamente contábil-formal, daí porque o governo federal tem se olvidado, historicamente, de cumprir as regras já estabelecidas de incentivos, tem deixado de fazer correção monetária dos valores de referência dos programas (não só da tabela SUS) e até mesmo tem atrasado repasses.
Cabe, pois, reiterar que é preciso fixar o regime jurídico do dever de aplicação em saúde dado pelo art. 198 da CR/88 referido ao cumprimento das obrigações legais e constitucionais de fazer na consecução do art. 196 e do SUS a que se referem os arts. 198 e 200, para além da estrita contabilização formal do piso em seu aspecto matemático.
A bem da verdade, a frustração do arranjo constitucional do SUS começa com a própria precariedade do levantamento dos riscos epidemiológicos e das necessidades de saúde da população para fins do devido planejamento sanitário e, por conseguinte, para a pactuação federativa na CIT. A União não admite pactuações para além do piso e as constrange para que fiquem formalmente compatíveis com o subfinaciamento. Tal cenário esvazia as responsabilidades recíprocas e praticamente interditou a implementação do contrato organizativo da ação pública da saúde previsto no Decreto 7.508/2011.
Somente com a consciência ampla da sociedade e, em especial, do Judiciário acerca do desequilíbrio na governança federativa do SUS para fins de contenção desse “Estado de Coisas Inconstitucional”, seria possível devidamente reposicionar o déficit de eficácia do direito fundamental à saúde na busca da macrojustiça orçamentária atinente à consecução da política pública que o materializa.
Em tempos de pandemia da Covid-19, reconhecer o problema e enfrentá-lo estruturalmente é a única solução capaz de situá-lo em seu devido patamar sistêmico, porque hábil a reconhecer que as medidas necessárias à sua resolução devem levar em conta, na forma da ADPF 347, “uma multiplicidade de atos comissivos e omissivos dos Poderes Públicos da União, dos Estados e do Distrito Federal, incluídos os de natureza normativa, administrativa e judicial.”
Denunciar todas essas inconsistências e propor seu controle por meio do reconhecimento do Estado de Coisas Inconstitucional na política pública de saúde brasileira é uma forma de homenagem a todos os profissionais que trabalham no SUS.
Hoje esta Coluna Contas à Vista é dedicada aos profissionais da saúde pública e também a todos nós que somos usuários do nosso SUS. No Dia Mundial da Saúde, precisamos todos defendê-lo para aprimorá-lo e, primordialmente, para assumi-lo como nosso maior legado civilizatório deixado pela Constituição de 1988. Mas isso só é possível mediante garantia de custeio constitucionalmente adequado e suficiente, algo já comprovado pela realidade destes tristes tempos de Covid-19.
2 Pinto EG. Estado de Coisas Inconstitucional na política pública de saúde brasileira. Rio de Janeiro: CEE-Fiocruz; 2017. Disponível em: http://www.cee.fiocruz.br/sites/default/files/Artigo_Elida_Graziane.pdf
Élida Graziane Pinto é procuradora do Ministério Público de Contas do Estado de São Paulo, pós-doutora em Administração pela Escola Brasileira de Administração Pública e de Empresas da Fundação Getulio Vargas (FGV/RJ) e doutora em Direito Administrativo pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG).