Há uma semana, o Executivo federal ensaiou qualificar a política de fomento ao setor de atenção primária à saúde no âmbito do Programa de Parcerias de Investimentos (PPI). Sua finalidade seria a de elaborar estudos para estruturar projetos pilotos de “parcerias com a iniciativa privada para a construção, a modernização e a operação de Unidades Básicas de Saúde dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios”.
O Decreto 10.530 foi publicado no Diário Oficial de 27 de outubro de 2020. Contudo, tamanha foi a controvérsia de que seria tendente à “privatização do SUS”1, que ele foi revogado pelo Decreto 10.533 no dia seguinte.
Boa síntese dos impasses ali contidos pode ser encontrada na nota emitida pelo Conselho Nacional de Secretários de Estado de Saúde (Conass):
“A edição do Decreto 10.530, publicado no Diário Oficial da União dia 27 de outubro, deixa sérias dúvidas quanto a seus reais propósitos. Preparado sem debate, o texto mistura aspectos distintos, como construção, modernização e operação de Unidades Básicas de Saúde. Por força de lei, decisões relativas à gestão do Sistema Único de Saúde (SUS) não são tomadas unilateralmente. Elas devem ser fruto do consenso entre os níveis federal, estadual e municipal, sob pena de absoluta nulidade.
A Atenção Primária à Saúde (APS) tem melhorado a vida dos brasileiros, como atestam vários estudos nacionais e internacionais. É uma política pública que alcança diretamente 160 milhões de pessoas, com efeitos inegáveis na redução das taxas de mortalidade e morbidade. São quase 53 mil equipes (somadas as equipes da Estratégia de Saúde da Família e outras modalidades) e 270.000 agentes comunitários de saúde presentes em todos os municípios brasileiros. Essa legião de trabalhadores tem um papel destacado no cuidado da população, especialmente nos difíceis momentos vividos no enfrentamento da COVID-19.
A PLOA de 2021 para a área de saúde prevê 17% dos recursos para atenção primária à saúde. Uma proporção bem menor do que os 22% reservados em 2020. Acreditamos ser primordial ampliar o orçamento para a área, de forma a garantir a oferta de cuidados aos brasileiros, sobretudo num cenário pós-pandemia.
Assim, o CONASS manifesta sua integral convicção de que a APS necessita ser preservada em sua forma de atuar, sob gestão pública e isenta de quaisquer atrelamentos às lógicas de mercado, que não cabem, absolutamente neste caso. O decreto apresentado não trata de um modelo de governança, mas é uma imposição de um modelo de negócio.
Iremos nos portar e nos manifestar, em todas as instâncias, em defesa desse grande patrimônio nacional que é o SUS. A revogação do Decreto 10.530 é urgente!” (grifos nossos)
Neste ano de calamidade decorrente da pandemia da Covid-19, a sociedade brasileira tornou-se mais consciente do fato de que a pactuação federativa da gestão do SUS reclama financiamento adequado. A prioridade alocativa da política pública de saúde deveria ser incidente sobre a atenção primária, onde a resposta estatal aos riscos epidemiológicos e às necessidades de saúde da população é mais custo-efetiva2.
Infelizmente, o cenário prospectado para 2021 é de risco de profunda insegurança para o custeio constitucionalmente adequado do SUS3 e de perda proporcional para o financiamento das atividades de prevenção e a promoção da saúde. Assim, a indicação pelo Executivo federal de que deseja ampliar a participação privada nas unidades básicas de saúde se revela ainda mais controvertida, porquanto feita sem maior diálogo com os gestores estaduais e municipais, tampouco sem avaliação detida acerca das mazelas estruturais do SUS.
Precisamente por isso é que o brevíssimo Decreto 10.530/2020 mais se assemelha a uma espécie de cortina de fumaça a ocultar problemas complexos, para cuja resolução o Executivo federal não mobilizou seus esforços, porque não se sente por eles diretamente responsável.
Eventuais parcerias com a iniciativa privada na atenção primária à saúde, como bem alertado pelo órgão colegiado dos Secretários de Estado de Saúde, reclamam cautela quanto à sua capilaridade federativa e ao seu arranjo necessariamente intensivo em mão-de-obra. Diferentemente do alegado pelo Executivo federal, o maior desafio não se trata de construir, modernizar e operar infraestrutura predial, mas, sobretudo, de gerir servidores.
Usar a terceirização apenas e tão somente para falsear os limites de gasto de pessoal é, por sinal, uma fraudulenta opção4 adotada por muitos gestores, que opera em sentido literalmente contrário ao art. 18, §1º da LRF, tal como já suscitamos aqui.
Tal engodo é impraticável na atenção básica à saúde, porque são cerca de 350 mil agentes comunitários de saúde e agentes de combate às endemias, cuja contratação deve ser feita diretamente pelo Poder Público, na forma do art. 2º da Emenda 51/2006 e da Lei 11.350/2006.
Noutro prisma, cumpre alertar que as obras em atraso merecem ser colocadas à frente das pressões e pretensões de novas obras, tal como dispõe o art. 45 da Lei de Responsabilidade Fiscal. Essa prioridade alocativa dada pela LRF deve servir de norte para orientar qualitativamente o fluxo das emendas parlamentares impositivas que perfazem o piso federal em ações e serviços públicos de saúde, na forma da Emenda 86/2015.
Soa bastante frágil, portanto, a tese de que seria necessário captar recursos privados para finalizar obras atrasadas/ paralisadas em unidades básicas de saúde, enquanto não forem destinadas primordialmente as emendas parlamentares impositivas para tal finalidade. Isso porque a pressão por obras novas em face do estoque de obras atrasadas/ paralisadas apenas tende a ampliar os desvios dos escassos recursos do SUS.
Em ambas as dimensões (mera realização de obras e tentativa de gestão terceirizada de pessoas), há claros impedimentos fixados no art. 2º, §4º, III da Lei 11.079/2004, além dos parâmetros dados pela Lei 11.350/2006.
Parece-nos, pois, que as parcerias público-privadas, sob a modalidade de concessão administrativa, como aparentemente aventadas no bojo do Decreto 10.530/2020, não são instrumento hábil para a operação das unidades básicas de saúde. A microescala territorial dos serviços e o custo agregado pela finalidade lucrativa do parceiro privado são limites praticamente intransponíveis para o escopo de gestão dos bens públicos e das equipes de saúde da família e, em especial, dos agentes comunitários de saúde e de combate às endemias.
Como bem denunciado pela nota do Conass, o objetivo do revogado Decreto 10.530/2020 não era propriamente dar respostas aos vazios e fragilidades da atenção primária à saúde de forma pactuada federativamente, mas tão somente impor assimetricamente, a partir do Executivo central, um “modelo de negócio” alheio à essência do regime jurídico do SUS.
Vale lembrar que, em 2014, trinta tribunais de contas brasileiros promoveram auditoria coordenada sobre as fragilidades e impasses da atenção básica à saúde, que foi condensada no Acórdão TCU 1.174/2015-Plenário e cujos principais achados seguem abaixo:
“1) Deficiências, nas três esferas, no levantamento das necessidades de saúde da população, diagnóstico esse necessário para planejar as ações de saúde, entre elas as da atenção básica. As principais fragilidades constatadas foram:
1.1) inexistência de diagnóstico contendo as especificidades locais e regionais;
1.2) inexistência de metodologia para a realização do levantamento das necessidades de saúde;
1.3) precariedade na participação das Unidades Básicas de Saúde (UBS) no processo de levantamento das necessidades de saúde;
1.4) precariedade na participação dos Conselhos de Saúde Municipais no processo de elaboração do planejamento das ações de saúde.
2) Deficiências, nas três esferas, na articulação interfederativa, uma vez que somente dois estados haviam assinado, à época, o Contrato Organizativo da Ação Pública da Saúde (COAP).
3) Deficiências, nas três esferas, nos processos de contrarreferência, nos quais os pacientes são reencaminhados à sua origem de acolhimento nas UBS.
4) Deficiências no financiamento tripartite da atenção básica, em especial nas transferências dos entes estaduais aos entes municipais, e na ausência de normativos estabelecendo qual a participação de cada ente federado.
5) Deficiências, nas três esferas, nas ações de capacitação dos profissionais envolvidos com a atenção básica, tanto profissionais de saúde quanto gestores. As principais fragilidades constatadas foram:
5.1) inexistência do Plano (Estadual e Municipal) de Educação Permanente em Saúde;
5.2) carência de diagnóstico fundamentando os planos de educação permanente existentes;
5.3) insuficiência de treinamentos voltados à atenção básica, em especial relacionados à gestão;
5.4) precariedade na consulta aos profissionais da atenção básica sobre as necessidades identificadas
6) Deficiências nas ações municipais voltadas à alocação e à permanência dos profissionais envolvidos com a atenção básica, envolvendo, principalmente, precariedade de vínculos contratuais e de condições de trabalho.
7) Deficiências em ações de monitoramento e avaliação da atenção básica, necessárias para que os gestores possam confrontar o planejamento e a execução, e adotar medidas corretivas, reordenar rumos ou fortalecer práticas. As principais fragilidades constatadas foram:
7.1) insuficiência de equipes de monitoramento e avaliação ou acúmulo de atribuições;
7.2) carência de indicadores para aferir aspectos relacionados à gestão da atenção básica;
7.3) precariedade da estrutura de Tecnologia da Informação para realizar as atividades de monitoramento e avaliação.”
Cinco anos depois dos resultados colhidos na aludida Auditoria Coordenada na Atenção Básica à Saúde, o Plano Nacional de Saúde relativo ao quadriênio 2020/2023 (disponível aqui) ainda arrola como dificuldades de gestão e governança do SUS em sua organização federativo-regional:
Heterogeneidade das atuais 438 regiões de saúde, com diversas características demográficas, socioeconômicas e de governança, o que impacta na capacidade de decidir e organizar a Rede de Atenção à Saúde (RAS);
Elevada dependência de fatores socioeconômicos para promover oferta desconcentrada de serviços, o que dialoga com a elevada interdependência da oferta de serviços no SUS com o setor privado, com ou sem fins lucrativos; e
A judicialização e a autonomia federativa são desafios frente às iniciativas de cooperação e gestão compartilhada. (2020, p. 124)
Para quem não planeja a política pública de saúde conforme levantamento territorialmente circunstanciado dos riscos epidemiológicos e das necessidades de saúde da população; para quem não executa o planejamento sanitário de forma articulada nas regiões de saúde e, portanto, não assegura ganho de escala e racionalidade gerencial às ações e serviços de saúde; para quem nega custeio juridicamente estável e fiscalmente progressivo ao SUS, porque dá causa a uma guerra fiscal de despesas no federalismo sanitário; para quem não coordena, tampouco monitora e fiscaliza os serviços terceirizados; para quem se recusa a cumprir seus compromissos legais e constitucionais, a opção por entregar a execução das atividades para a iniciativa privada é apenas mais uma tentativa de desonerar-se das suas responsabilidades.
Não deixa de ser sintomático que, no Acórdão TCU 2513/2019 — Plenário, alguns dos problemas arrolados no Acórdão TCU 1.174/2015 — Plenário persistam praticamente os mesmos ao longo dos anos, como se depreende dos exemplos abaixo:
Ao nosso sentir, por trás do rapidamente revogado Decreto 10.530/2020, havia algo pior do que a suposta tentativa de privatização do SUS. Ali subsistia uma reiterada declaração de incompetência do Estado em cumprir seu papel indelegável: planejar, pactuar federativamente, gerir regiões sanitárias e assegurar a consecução das ações e serviços públicos de saúde, mediante garantias de qualidade e financiamento que façam jus aos seus pilares de universalidade e integralidade.
1 Como se pode ler em https://noticias.uol.com.br/saude/ultimas-noticias/redacao/2020/10/28/jair-bolsonaro-paulo-guedes-ubs-sus-saude-publica-decreto-privatizacao.htm e https://conselho.saude.gov.br/ultimas-noticias-informes/1433-cns-se-posiciona-contra-decreto-10-530-2020-que-privatiza-unidades-basicas-de-saude
2 Conforme noticiado em https://aps.bvs.br/aps/qual-a-efetividade-e-eficiencia-da-atencao-primaria-a-saude, “estudos observacionais e experimentais evidenciam o efeito da APS e de seus atributos. (acesso de primeiro contato, integralidade, longitudinalidade, orientação familiar e comunitária) sobre: a diminuição de internações hospitalares por condições sensíveis à APS em crianças e adultos, equidade no acesso a serviços públicos de saúde infantil, diminuição de consultas não-urgentes a emergências, a redução do baixo peso ao nascer e da mortalidade infantil, redução da mortalidade por doenças cérebro-vasculares e da mortalidade geral de adultos, melhor autopercepção de saúde, maior satisfação dos usuários e a obtenção de melhores indicadores de saúde populacionais com menor custo”.
3 Tal como alertado por Bruno Moretti, Carlos Ocké e Francisco Funcia em https://brasildebate.com.br/por-que-o-sus-nao-pode-perder-r-35-bi-em-2021-em-meio-a-pandemia/
4 Como se pode ler em https://www.cnm.org.br/comunicacao/noticias/estudo-da-cnm-apresenta-panorama-da-contratacao-temporaria-e-da-terceirizacao-nos-municipios