Hoje dedico esta coluna à ministra Rosa Weber, do Supremo Tribunal Federal, na forma de uma carta pública, quiçá um apelo em busca da medida cautelar na ADI 5.658, que trata detidamente das consequências da Emenda 95/2016 para o financiamento dos direitos fundamentais à saúde e à educação.
Há tanto perigo na demora que peço desculpas pela ousadia, mas as chamas que indicam a fumaça do bom direito começam a queimar esses essenciais pilares da dignidade de cada qual dos cidadãos brasileiros e me inflamam dramaticamente a esta petição pública.
Chamo a atenção de Vossa Excelência particularmente para o decreto de programação financeira (Decreto 8.961, de 16 de janeiro, severamente agravado pelo Decreto 9.018, de 30 de março, ambos deste ano) e para o risco iminente de nossos pisos constitucionais em saúde e educação não só serem congelados em valores reais por duas décadas, como também estarem a sofrer uma redução regulamentar do seu alcance.
Explico-me, voltando um pouco nas bases do problema. O decreto de programação financeira[1] tem cumprido (de forma um tanto precipitada, a pretexto de preventiva) a função de contingenciamento. Por isso, estabelece limites de empenho e de pagamento, como também rege o tempo de realização das despesas, em consonância com a expectativa de ingresso das receitas e em conformidade com as metas fiscais da Lei de Diretrizes Orçamentárias. Tudo muito aparentemente técnico-contábil, mas profundamente fixador das prioridades alocativas da União...
Por meio de ato normativo infralegal, o fluxo de pagamento dos gastos mínimos em saúde e educação foi bifurcado em duas espécies de despesas, as designadas “obrigatórias” para fins do Anexo XII do Decreto 8.961/2017 e as “demais”, cujo rito de execução orçamentária parece caminhar no limbo dos limites de pagamento do Anexo II, para onde também foram remetidos, sem garantia de saldo financeiro para quitação correspondente, os elevados estoques de restos a pagar em ambas as políticas públicas.
Desamparado de qualquer critério previamente definido em lei, o Decreto 9.018 alterou o modo de compreensão do regime dos pisos constitucionais em saúde e educação, alterando abruptamente até mesmo a definição feita pelo Decreto 8.961, isso em um intervalo de apenas dois meses.
Para quem lida com execução orçamentária diuturnamente, não se justifica a expressiva segregação entre o fluxo de pagamento das despesas consideradas “obrigatórias” (Anexo XII) e o limite de pagamento das “demais” despesas (Anexo II), que foi feita pelo aludido decreto. Ora, a única razão possível para essa inédita discriminação reside no risco de que essas últimas estarão ainda sujeitas a toda sorte de adiamentos (a pretexto de contingenciamento), mesmo que façam parte do volume global de gastos computados no dever de aplicação mínima em saúde e educação.
A bem da verdade, já há um grande descasamento entre o limite de pagamento e o respectivo limite de empenhos para tais políticas públicas, ainda que já esteja incluído naquele o estoque de restos a pagar. Há nessa diferença uma deliberada estratégia de postergar a realização plena da despesa para exercícios futuros, comprometendo o destino da arrecadação dos anos seguintes com desarrazoada fatura de restos a pagar e negando efetividade presente às demandas da sociedade.
A que título e sob qual dramático risco? Eis a pergunta que alimenta nosso clamor, uma vez que, neste 2017, será fixada a base de cálculo dos pisos sobre a qual incidirá a mera correção monetária pelo IPCA nos próximos 20 anos.
O Anexo II, que contém os limites de pagamento do Decreto 8.961, parece se sujeitar a contingenciamento maior que o Anexo XII, de modo que, como em 2018 e nos próximos 19 anos, valerá a base de cálculo da despesa paga em 2017, corremos o risco de efetivamente só ver realizados o processamento (liquidação) e o integral pagamento das despesas contidas no Anexo XII.
Para falarmos em números, porque é disso que se trata a execução orçamentária, estão sob severíssimo risco de adiamento e verdadeiro limbo jurídico as despesas constantes da categoria "Demais" constante do Anexo XI do Decreto 8.961 (ou seja, R$ 27,288 bilhões para educação e R$ 29,548 bilhões para saúde), o volumoso saldo de restos a pagar no Anexo III (RP processados, sendo R$ 480 milhões na educação e R8 milhões na saúde) e no Anexo IV (RP não processados, sendo R,16 bilhões na educação e R,7 bilhões na saúde, dos quais R,1 bilhões são RP ordinários e R,6 bilhões de restos a pagar oriundos de “emendas com identificador de resultado primário 6”), mais o volume das emendas impositivas individuais e de bancada feitas à LOA 2017.
Ora, o teto global do Executivo federal já está em vigor em 2017, quando (contraditória e dubiamente) os pisos da educação e saúde ainda terão este ano para se comportar, respectivamente, conforme os artigos 212 e 198, parágrafo 2º da Constituição da República. Falta, ao nosso sentir, resguardar as pontes de interseção e erigir os imperativos de cautela para que os pisos não sejam rifados pela asfixia fiscal já imposta aos três poderes.
Precisamos pensar sempre no montante que, de fato, será pago em 2017, porque o teto fiscal da União (fixado globalmente pela EC 95) está em pleno vigor e apenas assegura correção monetária para as despesas efetivamente pagas em 2016. O seu regime de contabilização é o de caixa (despesa paga), portanto não basta a promessa da despesa empenhada (regime de competência), como, aliás, se sucede com o saldo volumoso de restos a pagar computados no piso federal em saúde (alguns dos quais pendentes de processamento desde 2003!).
Diante de tal pressuposto, a consequência lógica é que não há margem de “gordura” no teto fiscal global da União para absorver algo em torno de quase R bilhões de restos a pagar historicamente já pendentes de quitação, mais os que forem gerados nessa expressiva categoria designada como "Demais", cujo montante alcança a cifra aproximada de R bilhões apenas neste exercício de 2017.
Nosso sincero temor é o de uma profunda inexecução de programas essenciais, com o adiamento da sua satisfação para o campo dos restos a pagar ou para precatórios, o que certamente agravará o colapso dos serviços prestados no âmbito do SUS, bem como frustrará o dever de equalização das oportunidades educacionais e do padrão mínimo de qualidade que a União tem para com a educação básica obrigatória.
O questionamento da ADI 5.658 diz respeito não só à vedação de retrocesso e à relação de proporcionalidade entre gastos mínimos e receitas estatais, mas também implica considerar o que se pode reputar, ou não, como "despesa obrigatória" no seio do regime finalístico dos pisos constitucionais de custeio da saúde e educação.
Ao negar custeio adequado para as obrigações legais definidas na forma de metas e estratégias do Plano Nacional de Educação e do Plano Nacional de Saúde, os Decretos 8.961 e 9.018/2017 ultrapassaram as balizas finalísticas do elenco de despesas materialmente obrigatórias para o alcance das finalidades constitucionais a cargo do Estado brasileiro.
As próprias emendas parlamentares impositivas, cujo montante de 0,6% da RCL e o expressivo saldo de restos a pagar já computados em anos anteriores no piso federal em saúde ficaram de fora dessa espécie de "piso do piso" ou, noutra analogia, nesse "mínimo existencial" dos pisos de custeio da saúde e educação.
Não negamos, por óbvio, o fato de que o governo federal noticiou[2] uma frustração de arrecadação de R bilhões e, por conseguinte, elevou a meta de déficit primário para R9 bilhões em 2017. Reconhecemos, em igual medida, que isso implicará — para o custeio da saúde e educação – uma proporcional redução do gasto mínimo federal em ambas (15% da RCL na primeira e 18% da receita de impostos na segunda), mas questionamos severamente que só estejam resguardados, em tese, saldos de pagamento de R,244 bilhões para saúde e de R,174 bilhões para a educação, além das despesas com salários, as quais foram previamente excluídas desse montante, por força do artigo 1º, §1º, I, alínea “a” do Decreto 8.961/2017.
Deixamos aqui a pergunta sobre o que será feito para amparar todo o restante das despesas assinaladas pela genérica condição de “Demais”, que foram acobertadas pelo limite de empenhos do Anexo I e já se encontram constrangidas pelo limite menor de pagamentos do Anexo II, bem como todo o expressivo saldo de restos a pagar processados e não processados de que tratam os Anexos III e IV do aludido Decreto? Ficarão expostos ao relento da falta de garantia de custeio real?
Nosso temor é majorado pelo fato de que a Secretaria do Tesouro Nacional, à luz do art. 2º, §6º do Decreto 8961, incluído pelo Decreto 9018/2017, foi alçada à condição de "ordenadora central e universal de despesas", em afronta aos ditames constitucionais e legais que regulamentam a execução orçamentária dos pisos em saúde e educação.
Caminho para a conclusão, Vossa Excelência, como quem pede motivos para seguir lutando o bom combate e alimentando a fé de que a razão de ser do orçamento público reside na realização dos ditames constitucionais e, sobretudo, tem por finalidade — em última e extrema ratio — a efetividade dos direitos fundamentais que nucleiam o postulado da dignidade humana.
Nesse final de abril e tendo já em mente o projeto de LDO que o governo federal enviou para o Congresso para reger o exercício de 2018, o senso de urgência para a sociedade só faz aumentar em face do debate sobre a conformidade, ou não, do artigo 110 do ADCT, inserido em nossa Constituição Cidadã pela Emenda 95.
Não podemos desconhecer que o decurso dos dias é fatal para a execução orçamentária. Ainda que o senso comum não tenha devida clareza, precisamos afirmar — com consciência constitucional — que adiar é preterir. Se fosse, de fato, prioritário, seria executado prontamente conforme o fluxo da demanda da sociedade e a disponibilidade orçamentária do Estado. Infelizmente, contudo, significativa parcela do déficit de eficácia dos direitos fundamentais à saúde e à educação advém da postergação que mitiga a execução orçamentária das políticas públicas que lhes dão guarida.
Não basta, nesta quadra da história brasileira, observarmos o volume de recursos falseada e formalmente afiançado a ambos os direitos, sem assegurar a tempestividade e estabilidade dos repasses na nossa realidade profundamente marcada pela descentralização das responsabilidades federativas e pela reconcentração das receitas tributárias.
Na saúde e na educação, há uma fragilização estrutural das políticas públicas em seus pilares federativos a partir de uma mesma e coincidente lógica: esvaziamento[3] do dever de cooperação financeira da União e falseamento de gastos mínimos no nível dos Estados[4], com sobrecarga de custeio incidente sobre os Municípios.
É como se vivêssemos uma guerra fiscal de despesa reproduzida de cima para baixo, com lesões profundas para o dever de boa gestão dos recursos escassos, bem como para o cidadão que almeja a eficácia dos seus direitos subjetivos públicos. Essa crônica e irracional competição (ao invés de cooperação) federativa acarreta, por seu turno, um “quadro de violação massiva e persistente de direitos fundamentais, decorrente de falhas estruturais e falência de políticas públicas e cuja modificação depende de medidas abrangentes de natureza normativa, administrativa e orçamentária”, na forma como o STF designou o aventado “Estado de Coisas Inconstitucional” da ADPF 347.
Em um país, cujo analfabetismo funcional beira a casa de 90%[5] da sua população de 15 a 64 anos, os deveres de equalizar as oportunidades educacionais e de assegurar padrão mínimo de qualidade do ensino em todo o território nacional são ainda hoje tratados como quimeras da nossa Constituição, na forma do seu artigo 211, §1º. Isso ocorre, porque a União não[6] cumpre plenamente sua função redistributiva e supletiva em relação aos gastos realizados pelos demais entes. Falta regulamentar a noção de “custo-aluno qualidade”, o que caminha na mesma morosa linha de esvaziamento fiscal que o FUNDEF e o FUNDEB trilharam, haja vista a proporcionalmente restrita complementação federal para a educação básica obrigatória.
Da mesma forma, não é normal ou neutra a notícia[7] de que mais de 23 mil leitos foram fechados no âmbito do SUS nos últimos cinco anos, assim como chega a ser desesperada a iniciativa de mais de mil prefeitos ameaçarem greve[8] nos atendimentos em saúde, por causa dos atrasos recorrentes da execução orçamentária e a própria insuficiência dos repasses federativos em rota de descumprimento da pactuação celebrada pela governança federativa da saúde, qual seja, a Comissão Intergestores Tripartite[9].
Tudo isso vos escrevo, Excelentíssima Ministra, para — ao final — indagar se o que é mínimo na garantia de custeio dos direitos fundamentais à saúde e à educação pode ser minorado? Sob suas excelentíssimas pena e responsabilidade passa o caminho da resposta. Almejo, sinceramente, que a reflexão acerca da ADI 5.658 traga luz a esse debate. De minha parte, considero que os mínimos não podem ser minorados, tampouco adiados em limbos jurídicos da execução orçamentária que acabam por frustrar a eficácia dos próprios direitos fundamentais e, em última instância, põem a perder o nosso nuclear pacto civilizatório.
[1] A que se refere o artigo 8º da Lei de Responsabilidade Fiscal e que tem, na nossa realidade federal, cumprido também o papel de promover “preventivamente” o contingenciamento a que se refere o artigo 9º, também da LRF.
[2] Como se pode ler em http://agenciabrasil.ebc.com.br/economia/noticia/2017-04/governo-eleva-para-r-129-bilhoes-meta-de-deficit-primario-para-2018.
[3] De que dão notícia, por exemplo, os Acórdãos do TCU nº 618/2014 e 2888/2015.
[4] Algo que, na área da saúde, deu ensejo ao tema de Repercussão Geral 818, no âmbito do RE 858.075. Por outro lado, a educação ainda se ressente, por exemplo, da inclusão de despesas previdenciárias no cômputo do seu piso, que, apenas para citar o caso do Estado de São Paulo, alcança a cifra anual abusiva de cerca de R bilhões desviados da política pública educacional para cobertura de déficit financeiro da SPPrev (http://pfdc.pgr.mpf.mp.br/informativos/edicoes-2016/novembro/pfdc-quer-inconstitucionalidade-de-lei-paulista-que-viola-investimentos-minimos-na-saude-e-na-educacao/ )
[5] Como se pode ler em http://exame.abril.com.br/ciencia/so-8-dos-brasileiros-dominam-de-fato-portugues-e-matematica/
[6] Oportuna é a leitura da ação civil pública intentada pelo MPF quanto à falta de regulamentação do CAQi pela União no prazo definido pelo PNE. Disponível em http://www.mpf.mp.br/rj/sala-de-imprensa/docs/pr-rj/ACP%20inicial%20PP%203484-2016-10%20PNE%20%20-%20Custo%20Aluno%20Qualidade.pdf
[7] Como se pode ler em http://g1.globo.com/distrito-federal/noticia/2016/05/brasil-perde-23565-leitos-do-sus-em-cinco-anos-aponta-pesquisa.html
[8] Notícia disponível em http://oglobo.globo.com/brasil/crise-mais-de-mil-cidades-param-servicos-fazem-greves-17873082 .
[9] Trata-se de exigência do artigo 198, § 3º, II da CR/1988, regulamentada genericamente pelo artigo 17 da LC 141/2012. Falta a sua consolidação se dar no âmbito da aludida Comissão, para posterior aprovação do Conselho Nacional de Saúde. O TCU abordou detidamente a dimensão da governança federativa do SUS nos autos do TC 027.767/2014-0, de onde resultou o Acórdão 2888/2015, que recomendou ao Ministério da Saúde a apresentação de plano de ação para enfrentar tal omissão, que segue até hoje inadimplida.
*Élida Graziane Pinto é procuradora do Ministério Público de Contas do Estado de São Paulo, pós-doutora em Administração pela Escola Brasileira de Administração Pública e de Empresas da Fundação Getulio Vargas (FGV/RJ) e doutora em Direito Administrativo pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG).