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Consciência Negra em Manchas de Sangue: Como os gritos de Zumbi e Dandara ecoarão na prática do TCE-RS?

Escrito por Ceape-Sindicato20 de Nov de 2020 às 11:32
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Serão suficientes os sucessivos cards, as frases de efeitos pesquisadas no google, o apontamento do racismo alheio? Como de fato nos implicaremos, transformando consciência negra em atitude? Quais compromissos e desacomodações realmente estaremos dispostos a enfrentar?

Em uma sessão do pleno, o Presidente Estilac Xavier que tem publicamente defendido uma agenda antirracista abriu seu discurso citando Flávio Koutzi (um homem público reconhecido e branco): “Somos isto mesmo, a contradição, a ferida aberta, os atores limitados. Diante da força das coisas e das coisas da força, vamos muito lentamente. Tão lento que parece o mesmo lugar. Na verdade, organizar-se para lutar já é uma vitória. Firmar-se para manter o espaço conquistado, uma necessidade estratégica. Não caminhar em direção ao colapso e a destruição precoce, uma sabedoria”.

Nesse mesmo dia, pouco depois do discurso brilhante e os aplausos, no outro lado da cidade, a força das coisas e as coisas da força fizeram um jovem negro ir, de forma nada lenta. O lugar da morte estava longe de parecer aquele da sessão onde o referido discurso foi proferido: raríssimos são os negros e negras que acessam sessões de tribunais de contas. Não teve tempo de se organizar para lutar, como estratégia. Tampouco pode celebrar vitória, pelo que consta nas imagens das redes sociais. Foi empurrado ao colapso e à destruição de forma precoce, de forma torpe, sem sabedoria: João Alberto Silva Freitas, o Beto, de 40 anos, foi espancado e morto por seguranças de um supermercado. Uma cena que, para quem gosta dos rigores da tecnicidade, repete-se com frequência e significância estatísticas, comprovadas em bases informacionais públicas que vão do INFOPEN às PNADs. Não há aleatoriedade, não é pontual, não é natural: é um projeto de genocídio. 

Os tempos e as necessidades das vidas negras, definitivamente, não são os mesmos dos discursos dos homens brancos. A importante serena contemplação dos fenômenos da realidade e a análise crítica, tão bem expressados no trecho do mencionado discurso, raramente cabem nas vidas negras, espremidas pelas urgências de sobreviver no racismo estrutural. Como vamos saber se “somos isto mesmo, contradição, a ferida aberta, o ator limitado” não evoca uma conveniente limitação, para albergar uma conivência? Como forma de evitar as desacomodações de um enfrentamento que remonta raízes coloniais: pactos implícitos e sofisticados de uma branquitude privilegiada. Talvez, para além dos tempos, os espaços possam revelar.

Na mesma sessão do pleno, anunciou-se uma importante iniciativa pioneira: um certificado de práticas antirracistas. A comissão que elaborou é qualificada, tem disposição, acúmulo, capacidade de entrega e trabalha nos marcos definidos pela presidência. Mas quais os espaços que esses marcos delimitam? Serão limitados a apontar o racismo e antirracismo em outras instituições ou implicarão o TCE-RS? Deveremos nos contentar com o importante campo de autodeclaração no cadastro dos servidores ou avançaremos?  As urgências das vidas negras demandam outros espaços e tempos.

Teremos conselheiros e conselheiras negras, discutindo cotas raciais para a cúpula dos tribunais de contas, tal como o CNJ vem fazendo? Será exigido o importante conhecimento sobre racismo e antirracismo nos editais dos concursos? Discutiremos um plano de carreira que assegure cotas nas leis dos cargos? Enfrentaremos as questões de mobilidade funcional, em especial nos postos de comando, observando critérios de cor e gênero? Será no tempo da importante e serena contemplação dos discursos dos homens brancos, ou na velocidade da vida negra que se esvai assassinada na frente dos supermercados? Além da posição da Presidência, os demais Conselheiros e Conselheiras também vão se envolver efetivamente com essa agenda ou se limitarão a reproduzir os discursos simpáticos e convenientes sobre o tema? O que comunicarão para a sociedade?

Finalmente, debates como esse precisam avançar urgentemente dentro do TCE-RS. Consciência negra é intervir em estruturas de um privilégio branco, no tempo das vidas negras e abrindo espaços para as mesmas. Para que os Betos, Marielles e tantos outros possam não só escutar, mas também proferir, abrilhantados discursos nas instituições públicas. Para que possam ter o tempo e a contemplação presentes no discurso de Flávio Koutzi. Para que além de homens brancos, as citações sejam também espaços de autores e autoras negras. Para que os negros não sejam brutalmente assassinados na porta de um supermercado, quando poderiam estar no pleno de um tribunal.

Como os gritos de Zumbi e Dandara ecoarão na prática do TCE-RS?

   

 

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