O Covid-19, por ser extremamente contagioso, pode acarretar sobrecarga em sistemas de saúde e milhões de mortes. Como ainda não existe vacina ou tratamento com eficácia controlada, a única forma de prevenção de contágio é o isolamento social intensivo, que vem sendo adotado por diversos países. Em compensação, o lockdown necessário para o combate dessa pandemia reduz a atividade econômica e pode conduzir a uma profunda recessão global. Em projeção divulgada no último final de semana de março, o Imperial College estima que, no Brasil, medidas de isolamento social intensivo podem reduzir em mais de 1 milhão o número de mortes causadas pelo Covid-19. No Brasil, a pandemia ocorre em uma economia que ainda não recuperou o PIB da última recessão e que apresenta crescimento baixo, elevado nível de desemprego e informalidade, famílias endividadas, contas públicas fragilizadas, entre outros problemas.
Com atividades paradas, os maiores empregadores do país (micro, pequenas e médias empresas) são incapazes de sustentar folhas de pagamento. Pesquisadores da Fundação Getúlio Vargas de São Paulo estimam perdas mensais em cerca de R$ 57 bi de renda dos trabalhadores por conta própria, informais, desempregados e em desalento em virtude do isolamento social. Se a inadimplência devido à perda de renda da população afetar bancos pequenos e médios, há o risco de todo o sistema financeiro se fragilizar.
A situação é grave e a solução não cairá do céu. As medidas fiscais já anunciadas, com destaque para o remanejamento de recursos do orçamento da saúde para o Sistema Único de Saúde, suspensão da cobrança de tributos e o pagamento de renda básica emergencial para a população mais afetada pela crise, como os trabalhadores informais, autônomos, profissionais liberais, microempreendedores individuais e beneficiários do Bolsa Família, vão na direção correta, mas são claramente insuficientes, inclusive quanto aos valores envolvidos. É preciso ainda realizar um expressivo plano de investimento público para arrefecer a a crise e, sobretudo, puxar a economia com a recessão que deve vir. Sabemos que o financiamento dos gastos do governo pode vir rapidamente de endividamento público, que tem se tornado mais caro à medida que as expectativas se deterioram. Para se somar a eles, os recursos da chamada Conta Única do Tesouro Nacional, e mais especificamente os valores advindos da equalização cambial do Banco Central, poderiam ajudar a financiar despesas anticíclicas?
A Conta Única é o caixa do Tesouro Nacional, mantida no Banco Central por determinação constitucional e regulamentada pelo Decreto 93.872 de 1986. Isso se justifica porque as instituições financeiras mais importantes mantêm contas no Banco Central, o que viabiliza a operacionalização dos fluxos de caixa do Tesouro Nacional. Além disso, o montante de recursos movimentado pelo Tesouro Nacional é muito elevado, o que impacta a base monetária. O fato de tanto a Conta Única, quanto a Base Monetária, serem passivos do Banco Central facilita a programação monetária e a execução da política monetária.
A Conta Única em fevereiro de 2020 somava R$ 1,36 trilhão, 18,6% do PIB. Este valor é superior à receita corrente líquida da União acumulada de março de 2019 a fevereiro de 2020, de pouco mais de R$ 0,9 trilhão. É importante que o Tesouro Nacional tenha caixa suficientemente elevado para administrar seu enorme fluxo de caixa sem percalços. Estes recursos vieram do saldo acumulado de superávit primário, das operações financeiras do Tesouro Nacional, da atualização do valor patrimonial de ativos da União e do Banco Central. Com exceção dos recursos provenientes do Banco Central, tout court, o uso de recursos da Conta Única para fortalecer o Sistema Único de Saúde para combater a crise é relativamente simples. Devido ao Estado de Calamidade Pública, demanda principalmente mudanças na legislação infralegal. No caso dos recursos provenientes do Banco Central, a questão é mais complexa devido à vedação ao financiamento monetário do Tesouro Nacional contida no art. 164 da Constituição Federal.
Grosso modo, o Banco Central transfere recursos para a Conta Única pela apropriação de juros sobre a “aplicação” e pelo aporte de resultados. No primeiro caso, a origem é o serviço prestado pelo Banco Central ao Tesouro Nacional, o que também ocorreria caso o Tesouro Nacional depositasse suas disponibilidades em bancos comerciais. O aporte dos resultados do Banco Central na Conta Única decorre do fato de o Banco Central ser uma Autarquia Federal, cujos resultados são transferidos para o Tesouro Nacional de maneira análoga ao que ocorre com empresas estatais. Do mesmo modo, acionistas de bancos centrais privados recebem dividendos. Portanto, essas transferências não se confundem com a proibição contida no texto constitucional.
Devido à atuação intrinsecamente estabilizadora dos bancos centrais, seus resultados tendem a variar consideravelmente no curto prazo. Por essa razão, uma boa prática internacional é que os bancos centrais somente transfiram seus resultados aos controladores após a devida constituição de reservas, cuja função é compensar eventuais resultados negativos futuros. Essa é precisamente a redação do art. 7º da Lei de Responsabilidade Fiscal, o qual também determina que, caso a Autoridade Monetária tenha resultado negativo, o Tesouro Nacional aporte títulos na carteira do Banco Central. Entretanto, a constituição de reservas foi a exceção até o primeiro semestre de 2019.
Entre 2008 e o primeiro semestre de 2019, o resultado acumulado do Banco Central foi de mais de R$ 337 bilhões, sendo menos de 10% decorrentes da equalização cambial, que apura os resultados financeiros das operações cambiais de compra e venda de divisas (notadamente dólar), o saldo das operações de swap cambial e a atualização do valor das reservas em reais, e mais de 90% das demais operações do Banco Central. Desses recursos, apenas R$ 5 bilhões foram retidos para provisão de reservas no patrimônio líquido da Autoridade Monetária. Nos 13 semestres em que o Banco Central teve resultado positivo, este depositou R$ 908 bilhões na Conta Única, ao passo que, em 10 semestres nos quais o Banco Central teve perdas, o Tesouro Nacional aportou títulos no valor de R$ 576 bilhões na carteira do Banco Central.
Excluindo a equalização cambial, o Banco Central teve resultado positivo em 21 semestres, transferindo R$ 323 bilhões para a Conta Única, e resultado negativo em 2 semestres, resultando em aportes de R$ 18 bilhões de títulos do Tesouro. A equalização cambial, por sua vez, foi positiva em 9 semestres, totalizando R$ 694 bilhões, e negativa em 14 semestres, no valor de quase R$ 662 bilhões. Portanto, em grande medida o elevado montante da Conta Única e da carteira de títulos do Banco Central decorre da sistemática de transferências entre a Autoridade Monetária e o Tesouro Nacional.
É salutar que em algum momento uma lei promova acerto de contas entre as entidades, com a transferência de parte dos recursos da Conta Única para a conta de reserva do Banco Central. Isso ampliará a autonomia financeira da Autoridade Monetária, e a compensação com títulos públicos federais livres na carteira do Banco Central, diminuindo a dívida pública.
A fim de eliminar esse problema, a Lei 13.820, de 2019 determinou que o resultado da equalização cambial fosse destinado à constituição de reserva no patrimônio líquido do Banco Central. Ademais, qualquer excesso sobre tal reserva só pode ser usado pelo Tesouro Nacional para recomprar dívida pública. No segundo semestre de 2019, todos os ganhos de equalização cambial, quase R$ 43 bilhões, foram destinados à constituição de reservas no patrimônio líquido do Banco Central. De 1 de janeiro a 20 de março de 2020, a equalização cambial foi positiva em quase R$ 312 bilhões, mais de 98% do resultado do Banco Central, que é o limite máximo que pode ser repassado ao Tesouro Nacional e/ou construir reserva de resultado na Autoridade Monetária. Neste ano, há dois fatores que diminuem a necessidade de constituição desta reserva: a venda de reservas internacionais e a manutenção da cotação do real em patamar elevado enquanto durar a crise. Assim, uma lei que suspendesse a eficácia da referida Lei 13.820 enquanto durar o estado de calamidade pública não configuraria financiamento monetário do Tesouro Nacional e seria de grande valia para ajudá-lo a financiar o esforço de combate à crise.
As duas medidas aqui propostas, o acerto de contas entre o Banco Central e o Tesouro Nacional referente à conta de equalização cambial de 2008 ao primeiro semestre de 2019, e a transferência, do Banco Central para o Tesouro Nacional, dos resultados de equalização cambial de 2020 podem ser implementadas por meio de lei, inclusive medida provisória. Se implementadas conjuntamente, permitirão reforçar as reservas patrimoniais do Banco Central, reduzir a dívida pública e contribuir para o financiamento do Tesouro Nacional em momento de dificuldades sem, no entanto, configurar financiamento monetário do governo, que só poderia ocorrer por emenda constitucional ou interpretação de que o disposto no art. 164 da Constituição Federal não se aplica a situações excepcionais como a que estamos vivendo, pois “necesitas non habet legem”.
Assim, pretendemos oferecer a opção de o governo usar meios rápidos e acessíveis de recursos públicos para enfrentar a crise. Estes meios se adequam às regras de gasto: elas afetam a meta de primário, mas o governo está autorizado a descumpri-la; ao entrar como crédito extraordinário, está fora da Regra do Teto; por não ser recursos de dívida, não infringe a Regra de Ouro.
Não obstante, não entramos aqui em ações de política monetária e creditícia, também muito necessárias, mas que tornariam o artigo ainda mais longo. Aliás, nos concentramos em apontar fontes de recursos ao invés de medidas. Sabemos que será necessária, como toda e qualquer ação que envolva a coisa pública, vontade política e coordenação entre os Poderes Executivo, Legislativo, Judiciário, e o Tribunal de Contas da União, para que a legislação infraconstitucional que disciplina a relação Tesouro Nacional-Banco Central seja corretamente modificada e se tenha toda a transparência necessária à confecção de confiança à política econômica. O tempo destas ações é hoje. Não se sabe a duração da crise, mas se conhecem sua inevitabilidade e profundidade. Se o Brasil já vive, em termos normais, à beira de um caos social, a crise atual pode nos obrigar a dar o passo à frente. Há meios institucionais de evitar isso. Vamos usá-los.
Fábio Terra (UFABC e PPGE-UFU), André Roncaglia (UNIFESP), Rafael Leão (FGV-SP) e Rafael Bianchini (BCB e GVLaw)*
* As opiniões deste artigo são do autor e não refletem a posição institucional do Banco Central do Brasil.
1 Veja Imperial College COVID-19 Response Team (2020). The Global Impact of COVID-19 and strategies for mitigation and suppression. Summary Report 12. Londres: Imperial College.
2 Brancher et al. (2020). Impactos Econômicos da Crise do COVID-19 e dos Programas de Renda Básica Emergencial. Nota Técnica do Centro de Estudos do Novo Desenvolvimento. São Paulo: CND-FGV.
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