Com a situação de calamidade pública reconhecida pelo Congresso Nacional no último dia 20, o governo do Rio Grande do Sul e as administrações municipais das cidades atingidas pelas chuvas (o número só cresce) entram, até o fim de 2024, em uma espécie de regime especial no que diz respeito a regras orçamentárias. Isto porque o estado de calamidade permite uma série de flexibilizações nas restrições que são impostas pela Lei de Responsabilidade Fiscal (LRF) quanto ao atingimento de metas fiscais, limitação de empenho, contratação e aditamento de operações de crédito, recebimento de transferências voluntárias e concessão de benefícios tributários.
Especialistas na análise de contas públicas, contudo, assinalam que, apesar de as flexibilizações terem o objetivo de ajudar a manter as contas equilibradas em um cenário no qual a destruição tende a gerar queda de arrecadações combinada a necessidade de maior aporte de investimentos para recuperação, o estado de calamidade não dá licença para descontrole de gastos.
As regras a serem observadas sobre destinação de recursos são rigorosas. E, como 2024 é ano eleitoral, os gestores devem estar ainda mais atentos aos riscos de incorrerem em práticas vedadas pela legislação. A indicação é para que os administradores observem como parâmetro o ano de 2020, quando ocorreram as últimas eleições municipais e o país inteiro funcionava dentro do estado de calamidade pública em função da pandemia do coronavírus.
“Tudo o que foi decidido nas eleições de 2020 serve de balizador. O Estado passa por uma situação de calamidade e as flexibilizações estão previstas em detalhe na legislação. São absolutamente viáveis, desde que não ensejem promoção pessoal e, muito menos, sangria das contas”, adianta o advogado eleitoralista e presidente da Comissão Especial de Direito Eleitoral (Cede) da OAB/RS, Roger Fischer.
Conforme o auditor Filipe Leiria, que preside o Sindicato de Auditores Públicos Externos do Tribunal de Contas do Estado, é fundamental que sejam bem atestados os nexos de causalidade entre o evento climático e a necessidade do gasto, tanto no que se refere ao objeto quanto a temporalidade. “Já sobre a questão fiscal, em linhas gerais, pode-se projetar aumento dos gastos dos municípios, com a ressalva de que parte dos recursos virá de repasses da União, e queda da arrecadação. É precipitado, contudo, precisar, neste momento, qual o impacto desta combinação para o Estado".
Destruição vai engrossar lista de argumentos do governo para renegociar RRF
A destruição gerada pelas chuvas que seguem atingindo o RS, e que alcança desde parte das produções agrícola e industrial até o setor de serviços, além das dificuldades logísticas que passaram a enfrentar as regiões afetadas, deve se somar ao rol de argumentos que o governo do Estado vem utilizando na tentativa de renegociar os termos de sua adesão ao Regime de Recuperação Fiscal (RRF).
O RRF é o modelo de renegociação da dívida idealizado pela União que teve a adesão do RS concluída em junho do ano passado, após negociações iniciadas na gestão do ex-governador José Ivo Sartori (MDB). Polêmica desde seu início, a adesão ao regime foi classificada pela primeira administração Eduardo Leite (PSDB) como a solução possível para o equacionamento dos problemas financeiros do Estado e, até o início deste ano, o Executivo anunciava o ajuste nas contas como uma de suas realizações. Contudo, em 2023, já antes dos eventos climáticos extremos que atingiram o RS, a administração estadual havia passado a pleitear uma renegociação dos termos, sob o argumento de que as condições em vigor são muito duras e que, seguindo-as, a dívida vai se tornar impagável em um período de até cinco anos.
Apesar de se somar a argumentação em curso, o estado de calamidade, por si só, não altera as exigências do RRF. “A Lei Complementar 159/17 (que instituiu o regime) e suas alterações não trazem qualquer previsão referente a situações/eventos de calamidade. Por isso, a não ser que ocorra uma revisão, o Estado precisará seguir cumprindo o que o contrato estabelece em termos de metas e restrições” adianta o auditor Josué Martins, vice-presidente para a região Sul da Federação Nacional das Entidades dos Servidores dos Tribunais de Contas do Brasil.
Em 2020, situação atípica e seus limites geraram questionamentos entre políticos
Em 2020, com o estado de calamidade pública decretado em todo o país em função da pandemia da Covid-19, uma sucessão de situações acabou ensejando questionamentos entre políticos, quer estivessem eles disputando protagonismo nas ações de enfrentamento ao coronavírus, quer fossem adversários nas eleições municipais que ocorreram naquele ano. No RS, alguns casos ganharam notoriedade e seguiram tendo desdobramentos pelos anos seguintes e até os dias atuais. Confira alguns deles.
Bolsonaro x Leite
No início de 2021 o então presidente Jair Bolsonaro (PL) questionou nas redes sociais a aplicação de recursos que haviam sido repassados ao RS no ano anterior para ações de enfrentamento à pandemia, utilizando a cifra de R$ 40,9 bilhões. A repercussão obrigou uma resposta do governador, que esclareceu que o montante usado pelo presidente englobava valores não relacionados à situação provocada pelo coronavírus, inclusive as transferências constitucionais obrigatórias.
Ele ainda contra-atacou, assinalando que, no mesmo período, o RS havia enviado R$ 70 bilhões a Brasília em impostos federais. Sobre os repasses destinados a combater a pandemia em 2020, o governo gaúcho lembrou que a iniciativa do socorro era do Congresso Nacional, e divulgou números muito inferiores àqueles citados por Bolsonaro: um total de R$ 3 bilhões, dos quais R$ 2,1 bilhões de livre destinação. O assunto, contudo, seguiu gerando polêmica entre partidários do governador e do presidente, e foi retomado em debates das eleições do ano passado, quando Leite disputou o segundo turno da eleição para o governo com o bolsonarista Onyx Lorenzoni (PL).
Melo x Marchezan
Nas eleições de 2020, Nelson Marchezan Júnior (PSDB) e Sebastião Melo (MDB) disputavam a prefeitura com outros candidatos, sendo que o tucano era o então prefeito e pleiteava a reeleição. No primeiro turno, a coligação de Melo moveu ação questionando as condições de distribuição e a forma de financiamento, por parte da prefeitura, do então chamado kit bebê, por entender se tratar de propaganda eleitoral.
A iniciativa distribuía a gestantes produtos e equipamentos de higiene para bebês e integrava o Plano Emergencial de Proteção Social contra a Covid-19 da prefeitura. Melo obteve decisão liminar favorável que cancelou temporariamente a distribuição. Quando Marchezan não conseguiu se classificar para o segundo turno, a justiça eleitoral voltou a autorizar a continuidade do benefício. Melo venceu a eleição. Recentemente, o ex-prefeito teve uma decisão desfavorável no TRE, com determinação de aplicação de multa, e agora há recurso junto ao TSE.
Jairo Jorge x Busato
Também nas eleições de 2020, o então prefeito de Canoas, Luiz Carlos Busato (hoje no União Brasil e, à época, no PTB), disputava a reeleição e o hoje prefeito Jairo Jorge (PSD) era um dos concorrentes ao cargo. Ainda no primeiro turno, a coligação de Jairo ingressou com ação solicitando que Busato e assessores não entregassem pessoalmente cartões do chamado auxílio emergencial municipal.
O benefício havia sido criado em outubro daquele ano pela prefeitura, concedendo R$ 150,00 a famílias de baixa renda. A justiça eleitoral concedeu liminar proibindo o prefeito e assessores de fazerem as entregas pessoalmente e impedindo Busato de veicular propagandas que o mostrassem em locais de entregas ou vinculassem o candidato à distribuição. Em decisões posteriores, Busato foi condenado ao pagamento de multas pelo descumprimento da liminar. O caso teve decisão desfavorável ao ex-prefeito no TRE, mas há recurso junto ao TSE.
O que diz a Lei de Responsabilidade Fiscal
Art. 65. Na ocorrência de calamidade pública reconhecida pelo Congresso Nacional, no caso da União, ou pelas Assembleias Legislativas, na hipótese dos Estados e Municípios, enquanto perdurar a situação:
I - serão suspensas a contagem dos prazos e as disposições estabelecidas nos arts. 23, 31 e 70;
II - serão dispensados o atingimento dos resultados fiscais e a limitação de empenho prevista no art. 9o.
§ 1º Na ocorrência de calamidade pública reconhecida pelo Congresso Nacional, nos termos de decreto legislativo, em parte ou na integralidade do território nacional e enquanto perdurar a situação, além do previsto nos incisos I e II do caput:
I - serão dispensados os limites, condições e demais restrições aplicáveis à União, aos Estados, ao Distrito Federal e aos Municípios, bem como sua verificação, para
a) contratação e aditamento de operações de crédito;
b) concessão de garantias;
c) contratação entre entes da Federação;
d) recebimento de transferências voluntárias;
II – serão dispensados os limites e afastadas as vedações e sanções previstas e decorrentes dos arts. 35, 37 e 42, bem como será dispensado o cumprimento do disposto no parágrafo único do art. 8º desta Lei Complementar, desde que os recursos arrecadados sejam destinados ao combate à calamidade pública.
III - serão afastadas as condições e as vedações previstas nos arts. 14, 16 e 17 desta Lei Complementar, desde que o incentivo ou benefício e a criação ou o aumento da despesa sejam destinados ao combate à calamidade pública.