Como resultado de uma audiência pública da Comissão de Assuntos Municipais da Assembleia Legislativa do RS sobre a dívida do Estado com a União, decidiu-se que será elaborada uma carta a ser entregue para os candidatos ao governo do Estado com uma série de medidas alternativas à adesão ao Regime de Recuperação Fiscal — aprovado em janeiro na Casa, mas ainda não pactuado com o governo federal. A principal delas é a sugestão de que se faça um plebiscito para questionar a população se ela é a favor ou contra uma auditoria pública na dívida com a União. O argumento em defesa desse processo é que a União, desde 1999, vem cobrando juros sobre juros dos estados, o que seria ilegal e faz com que o RS, por exemplo, de uma dívida original de cerca de R$ 9 bilhões (em valores atualizados), já tenho pago cerca de R$ 25 bilhões ao longo do tempo, mas ainda deva cerca de R$ 60 bilhões.
Proponente da audiência pública, deputado estadual Juliano Roso (PCdoB), avaliou que a intenção do evento foi ouvir os estudiosos do tema e a posição do governo Sartori sobre a dívida, o que ele considera ser a “pauta mais importante” do Estado na atualidade. “É um momento que nós temos para fazer o contraponto ao Regime de Recuperação Fiscal”, disse.
Rodrigo Ávila, economista do movimento Auditoria Cidadã da Dívida, destacou que, de 1999 até 2015, os estados já pagaram R$ 277 bilhões para a União e mesmo assim a dívida subiu de R$ 93 bilhões para mais de R$ 400 bilhões. “A dívida foi paga três vezes, mas se multiplicou por cinco”, afirma.
Para o economista, as dívidas estão em montantes impagáveis e não há outra alternativa que não seja uma auditoria que identifique o que há de dívida real no saldo devedor dos estados e o que é apenas encargos cobrados ilegalmente pela União. “Em vários anos, os estados chegaram a pagar mais de 30% de juros sobre a dívida. Isso aí, no Direito internacional, é ilegal. Ou seja, é preciso questionar essas taxas de juros que geram uma situação de perpétua chantagem sobre os governos estaduais. Enquanto não se acaba de pagar essa dívida, o governo federal vai impor todas as medidas que quiser em troca de uma mera postergação de pagamentos, como nesse plano de recuperação fiscal, mas que na verdade não se trata de revisão da dívida, apenas de uma postergação de pagamentos que vão ter que ser feitos daqui a alguns anos com mais juros e mais correção monetária. Então, é preciso cortar pela raiz esse ciclo vicioso por meio de uma auditoria que possa cortar todas essas ilegitimidades, essas dívidas impagáveis que existem como instrumento de eterna chantagem com os estados”, afirmou
Rodrigo Ávila, economista da Auditoria Cidadã da Dívida | Foto: Marcelo Bertani/Agência ALRS
Ávila salienta que há uma série de ações tramitando no Supremo Tribunal Federal (STF) questionando, entre outras coisas, a cobrança de juros sobre juros e que há uma súmula da corte, de nº 121, que veda que a União cobre isto dos estados. “Existe a Súmula 121 do Supremo, que diz que não se pode cobrar juros sobre juros, mas nós sabemos que essa é uma questão política, de colocar na pauta do STF para concluir a votação e se concluir a favor do povo brasileiro e não dos setores rentistas”, disse.
Josué Martins, presidente do Sindicato de Auditores Públicos Externos do Tribunal de Contas do Estado (Ceape-RS) e coordenador no RS da Auditoria Cidadã da Dívida, foi o responsável por propor que o Estado aproveite a intenção de realizar um plebiscito para a privatização das estatais CEEE, Sulgás e CRM e pergunte a população se a dívida deve ser auditada ou não. “O problema é que a dívida tem sido utilizada sempre como justificativa para aplicar uma série de políticas que têm retirado da responsabilidade do Estado atender investimentos sociais, ou seja, aqueles devem atender as necessidades essenciais da população. Bom, é razoável que isso continue acontecendo quando paira sobre a dívida do RS uma série de dúvidas quanto à sua irregularidade? Nós consideramos que não”, afirma.
Outra possibilidade aventada é pressionar para que o Estado busque um “acordo de contas” com a União, equilibrando os valores que o RS deve com a dívida com o que o governo federal deve ao Estado pelo não repasse de valores de Lei Kandir, que isenta exportadores da cobrança de ICMS, mas estes valores deveriam ser ressarcidos pelo governo federal, o que nunca ocorreu de forma integral. Esta dívida da União também gira em torno de dezenas de bilhões de reais. Contudo, Roso defende que isso só será possível se for uma iniciativa de todos os estados devedores, não só do RS. “Claro que nós somos o Estado que mais deve, proporcionalmente falando, mas nós queremos envolver todos os estados devedores”, disse.
A posição do governo
Representando o governo, o secretário da Fazenda, Luiz Antônio Bins — que substituiu Giovani Feltes neste mês de abril –, afirmou que a solução que o Estado vislumbra sobre a dívida, neste momento, é unicamente a adesão ao Regime de Recuperação Fiscal, que irá congelar o pagamento das parcelas da dívida por três anos, prorrogáveis por mais três. Ele também salientou que foram conquistados avanços importantes sobre a questão, como a mudança dos indexadores de correção monetária do IGP-DI para o IPCA e redução dos encargos de juros de 6% ao ano para 4%, além do alongamento pelo prazo de 20 anos. “É uma ação importante porque visa fazer com que fiquem no Estado R$ 11,3 bilhões nos próximos três anos, em vez de remetê-los à União a título de pagamento do principal e dos encargos da dívida”, disse.
Contudo, questionado sobre a cobrança de juros sobre juros, que gerou até uma ação do próprio governo Sartori contra a União em 2016, Bins afirmou que insistir nesse questionamento poderia colocar em risco os acordos que vêm sendo firmados com o governo federal . “O Estado efetivamente entrou com um mandado de segurança no STF em 2016 para discutir a incidência de juros sobre juros. Naquela oportunidade, o STF, através do seu plenário, encaminhou que fosse buscado um acordo entre a União e os diversos estados que naquele momento discutiam a questão da dívida. Foi feito um acordo federativo. Fruto desse acordo foi dada uma liminar e após isso foi aprovada a Lei Complementar 156, cujos aditivos o Estado já celebrou em relação ao artigo 1º, que alonga em 20 anos o pagamento da dívida, e estamos conversando para celebrar em relação aos artigos 3º e 5º, que dão uma carência no pagamento durante 24 meses e que possibilitaram também o parcelamento do valor que não foi pago de abril a junho de 2016. Isso está em fase de negociação e, portanto, nesse momento, se voltar a discutir a incidência de juros sobre juros, que era o objeto daquele mandado de segurança, vai fazer com que tudo aquilo que foi acordado e determinado pelo Supremo deixe de ter efetividade”, disse.
Secretário da Fazenda, Luís Antônio Bins | Foto: Marcelo Bertani/Agência ALRS
Questionado sobre como o Estado fará para pagar a dívida após a suspensão do pagamento, devolveu com outra pergunta. “A pergunta que a sociedade do RS tem que responder é: nós queremos, nos próximos três anos, manter esses R$ 11,3 bilhões no Estado para investimento nas mais diversas políticas públicas, em especial saúde, educação, segurança e infraestrutura, ou nós queremos transferir esses valores à União a título de pagamento da dívida? Essa é a questão que tem que ser respondida. E o custo financeiro pelo não pagamento das parcelas pelos próximos três anos é da ordem de R$ 1,2 bilhão aproximadamente, ou seja, um valor que não é tão relevante quando se verifica a enorme crise fiscal que nós vivemos”, disse.
Os cálculos apresentados por Bins, no entanto, dizem respeito apenas às parcelas que estão deixando de ser pagas, mas a dívida aumenta em valores muito superiores anualmente pela incidência de encargos sobre o saldo devedor, este que está na casa dos R$ 60 bilhões. Se fosse levada em conta apenas a incidência de 4% de juros — ignorando a inflação –, em um ano o total da dívida já aumentaria mais de R$ 2 bilhões. Estimativas do CEAPE indicam que, caso o Estado confirme a adesão ao RRF e consiga a suspensão do pagamento das parcelas por seis anos, o total da dívida estará se aproximando ou terá passado dos R$ 90 bilhões. Com isso, a parcela mensal, que estava se aproximando dos R$ 300 milhões quando o Estado deixou de pagar a parcela da dívida, em agosto de 2017, poderá superar os R$ 600 milhões ou R$ 700 milhões mensais. O governo nega esse número. Questionado sobre esses números antes da audiência, Bins desconversou.
Roso avalia que, apesar de a adesão ter sido aprovada em janeiro pela Assembleia, já há uma reversão de posicionamento de alguns partidos da base aliada e questionamentos sobre se o Estado conseguirá cumprir as exigências impostas pela Secretaria do Tesouro Nacional para adesão ao RRF. “O governo Sartori tem que apresentar alguns documentos que ele não tem hoje na gaveta para apresentar para o Tesouro Nacional. Há uma certidão do Tribunal de Contas que não bate com a opinião do Tesouro Nacional e há também projetos que o governo tem que aprovar aqui na casa e, na minha opinião, terá dificuldades, ainda mais nesse ano. Eu conversava há pouco com um candidato a governador de um partido que estava com o governador Sartori e ele tem um entendimento diferente do RRF. Isso vai ter uma influência, porque os candidatos já estão posicionados, já estão na pista, o momento já é outro”, disse.
A ideia de Roso é que a carta seja elaborada a partir dos encaminhamentos da audiência pública e entregue a todos os candidatos que concorrerão ao Piratini em outubro.