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Ainda estou aqui

Leia artigo de João Neutzling Jr.

Escrito por João Neutzling Jr.*19 de Set de 2024 às 17:12
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No mesmo ano em que as famílias brasileiras se divertiam assistindo João Coragem em busca do diamante roubado na novela de Janete Clair na Rede Globo, ainda com transmissão em preto e branco, outra família brasileira enfrentava um drama.

Em 20 de janeiro de 1971, um comando da aeronáutica armado de metralhadoras, foi até casa do engenheiro Rubens Paiva na cidade do Rio de Janeiro e o  levou sob custódia sem nenhum amparo legal ou ordem judicial. Ele era ex-deputado do PTB. Obeso e diabético foi barbaramente torturado até que morreu por graves lesões e de hemorragia interna. Sua viúva, Eunice Paiva, fez uma peregrinação por vários hospitais e órgãos militares em busca do amado esposo. Tudo em vão, pois ele já estava morto há dias. Inclusive foi ameaçada de morte pela sua insistência.

No mesmo ano, teve igual fim o estudante Stuart Angel Jones, filho da estilista Zuzu Angel. Stuart foi sequestrado e morreu sob tortura em unidade da aeronáutica no Rio de Janeiro com apenas 25 anos. Sua mãe, depois de intensa campanha denunciando a morte do filho, acabou morrendo em um acidente misterioso em São Conrado no Rio em 1976. Em sua homenagem, uma via urbana no Rio foi nomeada Túnel Zuzu Angel.

A ditadura militar começou em 1964, com a derrubada do governo Goulart e se prolongou por longos vinte anos até 1984 com a subida ao poder de José Sarney, vice do presidente eleito Tancredo Neves. As violações dos direitos humanos tornaram-se rotina após o Ato Institucional nº 5, o AI-5, onde o país passou a viver um dos períodos mais sombrios. Ocorreu o fechamento do Congresso Nacional, e o presidente foi autorizado a decretar estado de sítio por tempo indeterminado, demitir servidores do serviço público sem justificativa, cassar mandatos, confiscar bens privados e intervir em todos os estados e municípios.

Por meio do AI-5, a Ditadura Militar iniciou o seu período mais rígido. A censura aos meios de comunicação e a tortura como prática dos agentes do governo consolidaram-se como ações comuns.

Cinquenta e três anos depois, este crime volta a lume por meio do filme “Ainda estou aqui”. Dirigida pelo notável Walter Salles (o mesmo de Central do Brasil e Diários de Motocicleta), a obra foi apresentada ao público recentemente no Festival de Veneza e, ao final, aplaudida por toda a plateia por longos dez minutos, o que levou o ator Selton Mello (que interpreta Rubens Paiva no filme) a chorar de emoção abraçado em Fernanda Torres (que interpreta Eunice Paiva). Fato que demonstra a maturidade do cinema brasileiro que não se via desde O Pagador de Promessas, de 1962, de Anselmo Duarte, único filme brasileiro que ganhou a Palma de Ouro no festival de cinema de Cannes, na França.

Um dos filhos de Rubens Paiva é o escritor Marcelo Rubens Paiva autor do livro Feliz Ano Velho (1982), vencedor do prêmio Jabuti.
Rubens Paiva participou ativamente da campanha O Petróleo é Nosso e atuou intensamente contra a campanha para depor o presidente João Goulart em 1964. Com o golpe de 64 partiu para o exílio, indo morar na França, como ocorreu com centenas de outros brasileiros perseguidos pelo governo militar.

Para investigar os crimes da ditadura brasileira foi criada a Comissão Nacional da Verdade (2011) que apontou a morte de Paiva como homicídio ocorrido em área militar. Seu cadáver? Nunca foi encontrado.
A ditadura militar começou a agonizar no início dos anos 80 devido à crise econômica. Em 1979 ocorreu o segundo choque do petróleo que encareceu ainda mais o seu preço obrigando o mundo a pisar no freio. Mas o Brasil optou pela política do crescimento com endividamento externo no governo João Figueiredo quando era ministro da Fazenda o economista Antônio Delfin Netto, recentemente falecido.

O resultado foi que em 1964 a dívida externa brasileira somava US$ 3,294 bilhões e, em 1985 totalizava US$ 105,171 bilhões, ou seja, cresceu 32 vezes durante os governos militares. Em 1984 a inflação anual foi de 215%, a perda de poder aquisitivo da classe trabalhadora era notória e isto fortaleceu os sindicatos. O país tinha que gerar superávit cambial (exportações maiores que importações) para obter dólares necessários para pagar a dívida externa. Logo a necessidade de menor consumo doméstico agregado, ou seja, recessão e desemprego.

Não havia mais “clima” para os miliares seguirem no poder, o modelo se esgotou e a recessão mostrava toda sua face com aumento do desemprego urbano. Muitos dos resultados nefastos da ditadura militar foram reunidos na obra O Brasil Pós-Milagre (1983) do economista Celso Furtado que aponta o aumento das desigualdades sociais e da pobreza no país.

A corrupção no governo militar também foi intensa. Alguns casos foram notórios como da empresa Lutfalla (do ex-governador Paulo Maluf), Capemi, Coroa Brastel, Caso Alexandre Baumgarten, grupo Delfin, entre tantos outros. E quem de tentava denunciar era calado, como ocorreu com o diplomata José Jobin. O embaixador havia desaparecido uma semana depois de anunciar um superfaturamento de dez vezes maior do que o valor original para a construção da Usina Hidrelétrica de Itaipu. Foi assassinado em 1979.

Eu não lembro como terminou a novela Irmãos Coragem, até por que eu detesto novelas, mas todos nós sabemos que Rubens Paiva foi sequestrado, torturado e assassinado por um comando militar. E o que mais me assusta é que tem pessoas que ainda defendem a ditadura militar, e tem gente que ainda vota nestas pessoas!

Cerca de 500 pessoas foram vítimas fatais na ditadura militar no Brasil, na vizinha Argentina, no período 1976-1983, foram mais 30 mil.

A memória de Rubens Paiva não se apagou e diz com toda força “Eu ainda estou aqui”

*Economista, Bacharel em Direito, Mestre em Educação, Auditor Estadual, Professor e Escritor (jntzjr@gmail.com)

   

 

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