Em um cenário onde o debate sobre a eficiência e a ética na administração pública alcança, com frequência, os holofotes do discurso social e político, a decisão do Supremo Tribunal Federal (STF) na Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI) 6.655/SE surge não apenas como uma resposta jurídica a uma questão específica, mas como um símbolo de um momento de inflexão na gestão pública brasileira.
Essa decisão emblemática desvenda as nuances do uso dos cargos comissionados e coloca em xeque práticas administrativas há muito enraizadas nas estruturas do poder público. É um marco que desafia o status quo, impulsionando uma reflexão profunda sobre os caminhos que nossa administração pública tem trilhado e para onde ela deve se dirigir no futuro, pois lança luz sobre a questão mais ampla do equilíbrio entre a necessidade de flexibilidade na gestão dos recursos humanos no setor público e a observância rigorosa dos princípios.
Ao questionar o emprego de cargos comissionados em funções que, pela sua natureza, exigem não apenas um alto grau de especialização técnica, mas também um compromisso inabalável com a ética e a imparcialidade, o STF não apenas interpreta a Constituição, mas convoca a sociedade e seus gestores a uma mudança de paradigma na administração pública.
Contexto histórico e jurídico
A gênese da ADI 6.655/SE, proposta pela Associação Nacional dos Tribunais de Contas, é emblemática de um debate jurídico e social mais amplo e profundo sobre a estrutura e o funcionamento da administração pública no Brasil, em função de uma intensa reflexão sobre os mecanismos de gestão de recursos humanos no setor público, particularmente sobre a utilização de cargos comissionados, tradicionalmente destinados a funções de confiança, mas frequentemente expandidos para abarcar atividades técnicas e especializadas, que, por sua natureza, demandariam uma seleção por mérito através de concurso público.
O cerne da controvérsia repousa na questão da constitucionalidade dessas nomeações para cargos que requerem não somente um conhecimento técnico específico, mas também um grau elevado de independência funcional. Essas características são inerentes aos cargos efetivos, cujo acesso é mediado por critérios objetivos de competência e habilidade, assegurando, assim, a eficácia e a imparcialidade na prestação dos serviços públicos.
Nesse contexto, a ADI 6.655/SE não apenas questiona práticas específicas de um Tribunal de Contas estadual, mas também coloca em xeque o modelo de gestão de pessoal no setor público como um todo, pois o debate transcende as fronteiras do estado de Sergipe, alcançando a esfera nacional e tornando-se um ponto de inflexão para a reflexão sobre como os cargos públicos são distribuídos e como as funções públicas são exercidas no Brasil.
Análise crítica do julgamento do STF na ADI 6.655/SE
A decisão proferida pelo Supremo Tribunal Federal abriu um novo capítulo na compreensão e aplicação dos princípios constitucionais que regem a administração pública, especialmente no tocante ao uso de cargos comissionados, pois, ao declarar a inconstitucionalidade de dispositivos legais que permitiam a nomeação de comissionados para funções finalísticas no Tribunal de Contas de Sergipe (TCE/SE), o STF não apenas reiterou a importância do princípio do concurso público, mas também destacou a essencialidade da competência técnica e da independência funcional para o exercício de tais funções.
A centralidade da argumentação do STF reside na clara distinção entre as atividades-meio, adequadas para serem desempenhadas por cargos comissionados, e as atividades-fim, que, dada a sua relevância estratégica para a administração pública e o controle externo, devem ser reservadas a servidores efetivos. Esta distinção sublinha um princípio fundamental: o exercício de funções públicas que demandam um elevado grau de especialização técnica e uma postura de imparcialidade não pode estar sujeito a influências políticas ou pessoais, garantindo, assim, a integridade e a eficácia da gestão pública.
A especificidade da decisão pode ser levada ao cabo quando se interpreta a nomeação de comissionados para cargos como coordenador da equipe das contas de governo ou inspetor de contas/coordenador de fiscalização em Tribunais de Contas, refletindo uma preocupação profunda com a natureza dessas funções, pois estas são posições críticas que requerem não apenas um conhecimento técnico aprofundado, mas também uma capacidade de julgamento autônoma e livre de vieses externos, essenciais para a fiscalização da correta aplicação dos recursos públicos e para a avaliação da legalidade e da eficiência das contas governamentais.
Ao mesmo tempo, essa decisão do STF implica um desafio para a administração pública: como assegurar a eficiência e a adaptabilidade na gestão, preservando a independência e a especialização técnica necessárias para o bom desempenho das funções públicas? Este julgamento força uma reflexão sobre os critérios de nomeação para cargos comissionados e sobre a necessidade de fortalecer os mecanismos de controle interno e externo, a fim de prevenir a instrumentalização dessas posições para fins políticos ou pessoais.
Consequências para a administração pública
A decisão do STF na ADI 6.655/SE desdobra-se em consequências significativas para a estruturação e distribuição de cargos comissionados na administração pública brasileira. O veredito não só impõe a necessidade de alinhamento das práticas administrativas aos princípios constitucionais, mas também reforça o imperativo de eficácia e integridade porque tal decisão inviabiliza, categoricamente, a nomeação de comissionados para liderar funções que exigem muita especialização e isenção, como a auditoria de contas ou as atividades de fiscalização.
Este cenário implica que os órgãos de controle e as entidades administrativas devem proceder com cautela na atribuição de responsabilidades aos cargos comissionados, sob pena de enfrentar consequências jurídicas diretas. O desrespeito às determinações estabelecidas pela decisão do STF pode acarretar ações judiciais de reclamação perante o próprio STF ou provocar intervenções dos Ministérios Públicos, que têm, entre suas atribuições, a defesa da ordem jurídica e do regime democrático.
A possibilidade de ações judiciais e de investigações por parte dos Ministérios Públicos serve como um lembrete da seriedade com que a decisão deve ser tratada e do compromisso que todos os entes públicos devem ter com a observância das normas constitucionais, inclusive institui um ambiente de maior accountability.
Reflexões sobre o equilíbrio entre flexibilidade e os princípios constitucionais
A decisão emblemática do STF nos convida à reflexão sobre um dos dilemas mais persistentes na administração pública: como alcançar o equilíbrio ideal entre a necessidade de flexibilidade administrativa e a rigorosa adesão aos princípios constitucionais que regem o serviço público? Este equilíbrio não é meramente teórico, mas uma questão prática que afeta diretamente a eficiência e a legitimidade da gestão pública.
A flexibilidade na gestão de cargos comissionados, frequentemente vista como um instrumento para a implementação ágil de políticas públicas, confronta-se com a exigência de imparcialidade, moralidade e eficiência, por exemplo. A questão central não reside na eliminação completa dos cargos comissionados, mas na sua correta utilização, assegurando que esses cargos sirvam ao propósito para o qual são destinados: funções que demandem, acima de tudo, confiança.
A decisão do STF reitera que a alocação de comissionados em funções que requerem especialização técnica e independência funcional compromete não apenas a qualidade dos serviços públicos, mas também a própria confiança da sociedade nas instituições.
Esta reflexão implica reconhecer que a gestão de recursos humanos no setor público deve ser pensada e executada dentro de um marco que respeite os limites constitucionais, sem que isso signifique um entrave à dinâmica administrativa necessária para o desenvolvimento de políticas públicas eficazes, até porque a busca por esse equilíbrio demanda uma revisão contínua das práticas de gestão, um compromisso com a formação e capacitação contínua dos servidores e, fundamentalmente, uma cultura organizacional que valorize a ética, a transparência e a responsabilidade com o interesse público.
Perspectivas futuras para a administração pública brasileira
No horizonte da administração pública brasileira, a decisão do Supremo Tribunal Federal na ADI 6.655/SE e a tramitação do Projeto de Lei Complementar (PLP) 79/22 desenham um futuro em que os princípios constitucionais assumem papel central na estruturação e operação do serviço público.
O PLP 79/22, ao propor normas gerais para a organização e funcionamento dos órgãos de controle, incluindo os Tribunais de Contas, reflete uma tentativa de resposta legislativa aos desafios impostos pela decisão do STF, buscando reforçar a estrutura de fiscalização financeira e administrativa da administração pública.
A sinergia entre a decisão da ADI 6.655/SE e a proposição do PLP 79/22 sugere um movimento em direção à consolidação de um modelo de gestão pública que valoriza a competência técnica e a independência funcional como critérios indissociáveis da nomeação para cargos que desempenham funções estratégicas e finalísticas.
Isso implica uma reconfiguração dos critérios de distribuição de cargos comissionados, priorizando a alocação de servidores efetivos, selecionados por meio de concurso público, para as funções que requerem conhecimento especializado e julgamento imparcial.
Neste contexto, a PLP 79/22 emerge como um instrumento normativo que pode fortalecer os órgãos de controle interno e externo, conferindo-lhes as ferramentas necessárias para exercerem suas funções de maneira eficaz, transparente e alinhada aos princípios constitucionais.
A proposta legislativa tem o potencial de estabelecer padrões uniformes para a atuação dos Tribunais de Contas em todo o território nacional, assegurando que a fiscalização da administração pública seja realizada de maneira consistente, objetiva e isenta de influências políticas ou pessoais.
Além disso, a discussão em torno do PLP 79/22 oferece uma oportunidade para repensar o modelo de gestão de pessoal no setor público, incentivando o desenvolvimento de políticas de recursos humanos que promovam a capacitação e a valorização dos servidores efetivos. Isso inclui a criação de mecanismos de progressão de carreira baseados em desempenho, competência e contribuição ao serviço público, contribuindo para a formação de um corpo técnico qualificado e comprometido com os valores da administração pública.
Portanto, as perspectivas futuras para a administração pública brasileira apontam para uma transformação firme, em direção a uma gestão mais transparente, responsável e fundamentada em princípios éticos e constitucionais.
A implementação da decisão da ADI 6.655/SE, em conjunto com a eventual aprovação e aplicação do PLP 79/22, representa uma oportunidade ímpar para o Brasil avançar na construção de um serviço público que esteja verdadeiramente a serviço da cidadania, caracterizado pela eficiência, pela qualidade e pela integridade em todas as suas ações.
À medida que navegamos pelas águas da mudança na administração pública brasileira emerge uma reflexão crítica sobre o estado atual de conformidade dos Tribunais de Contas pelo Brasil. A realidade de que alguns desses tribunais ainda não se alinham plenamente às determinações do STF destaca uma lacuna entre a teoria jurídica e a prática administrativa, revelando os desafios intrínsecos à implementação de reformas profundas na gestão pública.
Esta discrepância não apenas questiona a eficácia dos mecanismos de fiscalização e controle, mas também reflete sobre a essencialidade do compromisso com a legalidade e a ética no serviço público. A resistência à plena adoção das diretrizes estabelecidas pela mais alta corte do País pode ser vista como um sintoma de barreiras culturais, estruturais e políticas que persistem no seio da administração pública, desafiando a vontade reformista e a busca por uma gestão mais íntegra e eficiente.
O caminho à frente exige mais do que a simples promulgação de leis e decisões judiciais; demanda uma transformação na mentalidade e na cultura organizacional dos órgãos públicos, incluindo os Tribunais de Contas. Isso implica um esforço contínuo para promover a educação e a conscientização sobre a importância de aderir aos princípios constitucionais, não apenas como um imperativo legal, mas como um compromisso ético com o cidadão.
No entanto, é também uma oportunidade sem precedentes para reafirmar o compromisso com a integridade, a transparência e a eficácia na gestão dos recursos públicos. A mudança requerida transcende as barreiras legais e adentra o território da ética e da responsabilidade compartilhada, convidando todos os atores envolvidos a se dedicarem a uma visão de futuro onde o serviço público esteja, de fato, a serviço da cidadania.
*Advogado, presidente da Associação dos Auditores de Controle Externo do TCE/PR, graduado em Ciências Contábeis pela Universidade Católica de Santos, master of law em Direito Tributário pelo INSPER, pós-graduado em Gestão Pública pela UNIRIO, pós-graduado em Direito Público pela UNB, pós-graduado em Ética, Valores e Cidadania pela USP, professor da PUC/PR e auditor de Controle Externo do TCE-PR.