AYRES BRITTO
No Brasil, foi-se o tempo em que as instituições públicas eram vistas como um fim em si mesmas. As suas teóricas funções não contavam muito. O que prevalecia era o prestígio do aparato orgânico ou da estrutura formal em que toda instituição pública consiste. Aparato orgânico ou estrutura formal que, assim amplamente preponderante sobre a respectiva função, não raro terminava por se identificar com agentes de personalidade tão autoritária quanto fisiológica. E já se vê que estou a falar de órgãos como a Câmara dos Deputados Federais, o Senado, os ministérios e entidades do Poder Executivo da União (com suas equivalentes unidades de poder nos Estados-membros, no Distrito Federal e nos municípios), os tribunais judiciários, o Ministério Público, os Tribunais de Contas etc.
Agora, sob um regime de plenitude democrática e de liberdade de imprensa, estamos nos habituando a pôr os pontos nos is. Mais e mais, estamos implantando no país uma cultura do debate, o que nos leva a tudo questionar. A tudo querer saber. A tudo investigar. A tudo trazer a lume. Criticamente, corajosamente, desalienadamente, como é próprio de todo povo que se emancipa ou que se liberta mentalmente. Povo que amadurece para a compreensão de que o controle é a quarta função básica do Estado, e para isso é que apetrecha a cidadania, tanto quanto são constituídos o próprio Congresso Nacional, as comissões parlamentares de inquérito, os Tribunais de Contas, o Ministério Público, a Receita Federal e o Poder Judiciário como um todo.
Nesse novo quadro da mais harmoniosa convivência da democracia com a liberdade de imprensa em plenitude (irmãs siamesas que são), a primazia se desloca para as funções de cada unidade institucional. As funções enquanto fim, as instituições enquanto meio. Afinal, em linguagem tão médica quanto jurídica, função é atividade própria de um órgão. Aquilo que põe o órgão em movimento. Que só existe para dela se desincumbir, tanto no plano da efetividade (presença real) quanto da eficácia (eficiência operacional). Órgão que somente vale porque a função vale, saltando à razão que é pelo desempenho de suas funções essenciais que as instituições públicas vão realizar aqueles valores que mais dão sentido, grandeza e orgulho cívico à sociedade como um todo e a cada qual dos seus individualizados membros. Valores fundamentais como “a liberdade, a segurança, o bem-estar, o desenvolvimento, a igualdade e a justiça”, apenas para citar os nominalmente referidos no preâmbulo da nossa Constituição.
Esta nova era ou quadra histórica brasileira já não aceita, portanto, a simples congregação de agentes públicos na ossatura formal dessa ou daquela instituição. Desse ou daquele órgão, ou pessoa jurídico-estatal. Congregação que, tão voluntária quanto cronicamente desrespeitosa de sua função elementar, já não agrega valor a nada. Nem a si mesma, nem aos seus individualizados membros. Menos ainda aos princípios fundamentais a que deveria servir. À semelhança de um ouvido humano que definitivamente deixa de escutar, e que, por isso mesmo, apenas subsiste como orelha. Peça decorativa ou mero ornamento estético na anatomia do rosto. Lantejoula ou bijuteria, no caso das instituições.
Enfim, estamos evoluindo o suficiente para entender que não basta a consciência da essencialidade de uma dada instituição pública. É preciso ainda saltar dessa consciência de essencialidade para a consciência de efetividade e até de eficácia (efetividade como presença real e eficácia como eficiência operacional, voltamos a dizer). É assim que podemos fazer da melhor normatividade a melhor experiência. Deixando claro para todos os exercentes de função estatal que o seu dever não é de fidelidade a pessoas, ainda que postas nos mais altos escalões do poder, mas de fidelidade à função que seja própria do órgão em que atuam. Pois o certo é que as funções estatais estão para os valores jurídicos assim como as instituições públicas estão para as respectivas funções. Ignorar deliberadamente esses vínculos essenciais é se deslegitimar como encarnação ou a face mais visível do poder. Algo assim como conspurcar a casa do Direito e profanar o templo da Justiça, metaforicamente falando.
*Poeta e ministro aposentado do Supremo Tribunal Federal