A pandemia do novo coronavírus obrigou o governo a aumentar gastos com a área de saúde e dar apoio financeiro à população economicamente atingida pela crise. Esse aumento de despesas só foi possível porque o Congresso decretou calamidade pública em março e aprovou em maio o orçamento de guerra, um orçamento paralelo para as despesas relacionadas à covid-19. Ambas medidas afrouxaram as regras fiscais para o momento de combate à crise.
Esse afrouxamento foi o que permitiu que o governo federal pudesse bancar novos gastos como o auxílio emergencial, articulado pelos parlamentares em R$ 600 reais nos primeiros meses da crise. O auxílio atingiu mais de 67 milhões de brasileiros e ajudou a reduzir a pobreza no país a níveis historicamente baixos.
Regras fiscais flexibilizadas na pandemia
TETO DE GASTOS
A emenda constitucional do teto de gastos foi aprovada no final de 2016, no governo de Michel Temer, como uma ferramenta legal para garantir que a administração pública não extrapole seus gastos. Resumidamente, o teto limita os gastos reais (ajustados pela inflação) do governo a um nível pré-determinado. O limite para os gastos é calculado a partir das despesas do ano anterior. Não entram no escopo do teto créditos extraordinários permitidos em casos urgentes e imprevisíveis – como na calamidade pública em 2020. Esses créditos têm sido uma das principais ferramentas do governo para conseguir aumentar gastos dentro das regras fiscais na pandemia.
REGRA DE OURO
A regra de ouro é uma norma que proíbe governos de contraírem dívida para pagar despesas correntes, como salários, benefícios assistenciais e manutenção habitual da máquina pública. Com o orçamento de guerra, os gastos relacionados à pandemia não ficam sujeitos a essa regra, pois fazem parte de um orçamento paralelo. Assim, gestores que autorizarem o endividamento do Estado para o pagamento de despesas rotineiras não incorrerão em crimes de responsabilidade fiscal.
META FISCAL
A meta de resultado primário – também conhecida como meta fiscal – é uma exigência da Lei de Responsabilidade Fiscal e consta na Lei de Diretrizes Orçamentárias. Basicamente, o governo propõe para determinado ano um objetivo para a diferença entre receitas e gastos. Na meta de resultado fiscal da União em 2020, estava previsto um deficit de R$ 124,1 bilhões. A Lei de Responsabilidade Fiscal prevê que, em caso de calamidade pública, o governo seja dispensado de atingir a meta fiscal determinada para o ano. A decisão de declarar calamidade, portanto, liberou a União para descumprir a meta e gastar mais dinheiro do que o previsto originalmente. Só nos primeiros oito meses do ano, o rombo foi de mais de R$ 570 bilhões. No projeto de Lei de Diretrizes Orçamentárias para 2021 enviado ao Congresso, o governo não definiu um valor específico para a meta fiscal, por conta das incertezas trazidas pela pandemia.
Os gastos do governo em 2021
A calamidade pública e o orçamento de guerra têm data de validade: 31 de dezembro de 2020. A partir do primeiro dia de 2021, voltam a valer as regras fiscais normais. Os gastos do governo, portanto, terão que ser reduzidos significativamente em relação a 2020 para se manterem dentro da lei.
Com a restrição orçamentária mais rígida, o governo procura remanejar recursos e cortar despesas para abrir espaço para novos gastos, como o investimento em obras ou o Renda Cidadã, novo programa social que deverá suceder o auxílio emergencial e substituir o Bolsa Família.
O governo de Jair Bolsonaro também procura outras maneiras de ganhar fôlego para pelo menos alguma alta nos gastos do governo em 2021. Para bancar o Renda Cidadã, por exemplo, já foram ventiladas ideias como cortar benefícios sociais, congelar aposentadorias, limitar pagamento de precatórios (dívidas judiciais do governo) e manobras usando recursos originalmente voltados para a educação, que não entram no escopo do teto de gastos. As ideias, por ora, foram rejeitadas, e a fonte de financiamento do programa segue sendo discutida em Brasília.
Outra ideia que corre nos bastidores entre Executivo e Legislativo é a criação de mecanismos permanentes que remontem ao orçamento de guerra, e que permitam que o governo federal aumente gastos em caso de uma nova calamidade pública. Em 7 de outubro, o ministro da Economia, Paulo Guedes, negou que a calamidade pública seja prorrogada para além de 31 de dezembro de 2020. A fala de Guedes foi endossada por Rodrigo Maia (DEM-RJ), presidente da Câmara dos Deputados.
Na quinta-feira (8), o Tribunal de Contas da União autorizou na que o governo aproveite excepcionalmente recursos que “sobraram” do orçamento de guerra em 2020 para pagar despesas com seguro-desemprego e abono salarial.
O dilema orçamentário sob análise
O Nexo conversou com Élida Graziane, procuradora do Ministério Público de Contas do Estado de São Paulo e professora do curso de administração pública da FGV-Eaesp (Escola de Administração de Empresas de São Paulo da Fundação Getulio Vargas), para entender as alternativas orçamentárias do governo para lidar com os efeitos econômicos da pandemia em 2021.
Até que ponto o surgimento de uma vacina resolverá os problemas econômicos do país?
ÉLIDA GRAZIANE Ainda que aconteça o surgimento da vacina, ela não significa cobertura rápida e acesso universal no âmbito do SUS na escala que estabilizaria as expectativas. Mesmo que surja uma vacina, você tem um cronograma de vacinação, de ampliação de acesso para reduzir os riscos. E a palavra chave para lidar com a economia é exatamente a ideia de gestão de expectativas e de riscos.
Como o governo deve abordar o transbordamento da crise para 2021 e gerir esses riscos e expectativas? É possível o governo atender às necessidades da população em 2021 dentro das regras usuais de Orçamento?
ÉLIDA GRAZIANE O primeiro ponto que acho essencial para fazermos um planejamento adequado das políticas públicas – da capacidade de o Estado estabilizar a insegurança sanitária e econômica da sociedade – é lidar com essas variáveis de risco. Não é admissível que a gente venda a solução mágica, milagrosa ou rápida, sem pactuar, por exemplo, a questão de uma transição paulatina. Não é crível prometer que vamos voltar todo mundo amanhã para as escolas, que as famílias poderão voltar ao trabalho, que vamos conseguir amparar a perda de empregos, que o mercado vai conseguir um caminho para abrir espaço para tanta gente desempregada e desalentada. É voluntarioso e falso [vender essa ideia]. Não parte de um diagnóstico sério.
Por isso mesmo tenho proposto um plano bienal para lidarmos com a variável ‘tempo’ de forma mais séria, mais consistente – inclusive do ponto de vista dos limites fiscais. É inconcebível imaginarmos que dá para voltar à regra do teto de gastos no passe de mágica da virada do ano. A própria emenda do orçamento de guerra fala não só em pretender dispor de mecanismos para a pandemia no seu curtíssimo prazo, mas também os seus efeitos, as suas consequências [num prazo mais longo].
Temos que pensar o ano de 2021 – no mínimo – com a cautela típica de um pós-guerra. Temos que ter essa postura racional, impessoal. [Uma postura] de não ficar entrando na insanidade ideológica do teto pelo teto – o teto como fim em si mesmo – e de deixar as pessoas de fora do ciclo orçamentário; de entrar numa perspectiva de negar a razão de ser do Estado.
O teto, por si só, não se sustenta. O próprio teto sabe os limites que apresenta. Há um maniqueísmo falacioso no debate do teto de dizer que ele não pode ser alterado. Mas, do ponto de vista jurídico, ele já foi alterado – o teto não é imutável. Foi alterado pela Emenda Constitucional 102, que permitiu que a União repassasse na federação recursos da cessão onerosa do pré-sal, no final de 2019. Não é admissível pregar uma solução miraculosa, uma solução leviana a respeito da saída da crise. A saída da crise requer tempo de maturação, diálogo federativo e resguardar a continuidade dos serviços públicos essenciais.
Quais deveriam ser os focos desse plano bienal?
ÉLIDA GRAZIANE Precisamos ampliar a dimensão temporal para lidar com esses efeitos ainda incalculados: como a logística de resposta da cobertura vacinal, que não está sendo tratada com a devida seriedade, e como a questão dos insumos necessários à aplicação – eventualmente injeções e refrigeração.
Soma-se a isso a questão do auxílio emergencial, que agora se tornaria uma versão ampliada do Bolsa Família. É inconcebível imaginar que possamos deixar 38 milhões de pessoas sem nenhuma garantia de segurança alimentar – não estou nem falando de renda num patamar acima da subsistência; é a pura subsistência. Conceber uma solução mais temporalmente dilatada faria com que conseguíssemos ser mais racionais nesse debate.
[Assim] conseguimos um debate mais impessoal, inclusive – o que ressoa na questão de prefeitos e campanha eleitoral, com dinheiro da covid-19 chegando em pleno momento de eleições. Se esse dinheiro tiver que ser gasto todo até 31 de dezembro de 2020, haverá má qualidade do gasto, como já houve. Quando o Ministério da Saúde começou a liberar [o dinheiro] em junho, já havia carimbo de deputados e senadores, inclusive com a pretensão de influenciar o processo eleitoral. O dinheiro ter sido liberado muito atrasado – 4 ou 5 meses depois de quando já havíamos perdido o controle do rastreamento da pandemia – mostra bem que não só demos uma resposta inadequada do ponto de vista do SUS, mas também entraram muitas chances desse patrimonialismo que estamos vendo: desvios dos mais variados.
As prefeituras e mesmo os estados, com a frustração de arrecadação, não têm garantia para 2021 de custeio para coisas básicas, como coleta de lixo, administração prisional. Veja o desespero. E não adianta achar que vamos conseguir aumentar a carga tributária de afogadilho também, que vamos conseguir cortar de forma consistente despesas permanentes para abrir espaço fiscal para o Renda Cidadã. Tudo soa muito voluntarioso.
Como poderia funcionar esse plano bienal?
ÉLIDA GRAZIANE A proposta é obrigar o custeio das despesas que já estão nas Leis de Diretrizes Orçamentárias dos estados, municípios e União como não suscetíveis de contingenciamento – seriam aquilo que podemos definir como serviços públicos essenciais, a razão de ser do Estado brasileiro. Se não houver arrecadação tributária [suficiente] nos estados e municípios, a União deveria suportar essas despesas nesse plano bienal de enfrentamento da pandemia.
Isso levaria a aumento da dívida no curto prazo, e depois teríamos que retomar a agenda de uma reforma tributária progressiva, aí sim revendo despesas que têm uma baixa efetividade ou que têm sua própria iniquidade. Mas para 2021 temos que garantir esse custeio das despesas já inseridas no anexo de despesas não-contingenciáveis em todos os entes da federação.
A senhora fala muito em planejamento. Acha que a discussão e aprovação do Orçamento de 2021 irá ocorrer com essa racionalidade e organização?
ÉLIDA GRAZIANE Meu medo, agora que o governo deixou tudo para depois das eleições, é esse prazo fatídico de 31 de dezembro de 2020, que é o prazo [final] do decreto legislativo da calamidade pública e que marca a própria vigência do orçamento de guerra. A Lei de Diretrizes Orçamentárias ainda não foi aprovada [até 8 de outubro de 2020], nem houve a instalação da Comissão Mista Orçamentária. O projeto de orçamento [está] nessa disputa ideológica triste, infeliz.
Se empurrarem tudo isso para o último mês do ano, e deixarem para fazer um debate dessa complexidade e com essa envergadura só a partir de 15 de novembro [data das eleições], meu medo é que venha uma pressão e disputa política de verdadeiro feudalismo fiscal, um risco patrimonialista terrível. As regras fiscais estão mostrando um esgarçamento, uma fratura profunda da nossa capacidade de dizer quem vai pagar a conta. Há um direcionamento paroquial, muito voluntarioso, fora de um debate mais amplo sobre onde a gente precisa de fato que haja a aplicação de recursos públicos.
Falo em feudalismo fiscal no sentido de não obedecermos esse planejamento, de não termos regras impessoais. De ser sempre uma decisão unilateral do Executivo, de alguns poucos que com ele pactuam soluções muito imediatistas. Era para estarmos tendo audiências públicas da Lei de Diretrizes Orçamentárias, da regulamentação do Fundeb, da Lei Orçamentária Anual. Nada disso está sendo feito. E aí vai chegar o final de novembro, depois das eleições municipais e as soluções vão ser costuradas em poucas salas paroquiais – o público que não é feito em público.
Como avalia a declaração de Paulo Guedes – e subsequente endosso de Rodrigo Maia – de que a calamidade pública acaba em 31 de dezembro de 2020?
ÉLIDA GRAZIANE Esse é um tipo de postura governamental que não está baseada em um diagnóstico preciso da política pública. É um pensamento mágico, não está embasado em evidências científicas. Todos os dados que temos – não só do ponto de vista sanitário, mas também da atividade econômica – indicam a necessidade de o poder público garantir as expectativas e garantir a segurança alimentar. É inconcebível imaginar que o Estado possa se ausentar na transição [da guerra para o pós-guerra]. Inclusive porque a gente vai chegar agora a 150 mil mortos e, do ponto de vista jurídico, são 150 mil mortes que podem ser imputadas à omissão do poder público. A ação insuficiente, a ação inadequada, a ação atrasada, a ação descoordenada no âmbito da pandemia pode ser imputada judicialmente.
A palavra é essa: planejar. Ou seja, conhecer o problema, enfrentar todas as possíveis situações de conflito, apresentar os prós, os contras, a partir daí formular um prognóstico bem embasado. E não esse voluntarismo. Estamos fazendo política pública no Brasil por tentativa e erro. Na política pública de assistência social, por exemplo, estamos tentando debater “x” bilhões sem nem ter a formatação de que população vai ser atendida, qual vai ser a renda, qual é o foco da política pública. Não se define o que vai ser feito. Não se define o objeto nuclear da ação governamental. Só se quer abrir a margem fiscal pela margem fiscal, para fazer propaganda eleitoral. E aí você passa o carro à frente dos bois. Você inverte a equação entre o que é meio e o que é fim.
A política pública reclama um debate ostensivo. Ao antecipar os riscos e os possíveis constrangimentos institucionais trazidos pelos órgãos de controle, ao avaliar melhor, desde a etapa de formulação da política pública, tudo aquilo que ela poderia ter de questionamento, a política pública nasce mais coerente e coesa. E, portanto, mais longeva. Percebo no Brasil um voluntarismo fiscal, respostas de fôlego curto.