O debate sobre a crise financeira do Rio Grande do Sul se insere em um contexto mais amplo que envolve as relações do Estado brasileiro com o sistema financeiro e com a própria concepção de Estado advinda daí. No Plano Real, o Brasil fez uma escolha e adotou uma política de controle da inflação baseada em altas taxas de juros e no consequente superendividamento do setor público. O acordo da dívida que o Rio Grande do Sul firmou com a União em 1998, durante o governo Antonio Britto, insere-se nesta lógica e foi muito nocivo para o Estado, retirando autonomia de gestão financeira e impondo políticas de cortes de investimentos, arrocho salarial sobre os servidores e venda de patrimônio público. A análise é de Josué Martins, auditor público do Tribunal de Contas do Estado do Rio Grande do Sul e membro da coordenação do Núcleo Gaúcho da Auditoria Cidadã da Dívida Pública, que participou, na semana passada, de um debate sobre o sistema da dívida, na Faculdade de Economia da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS).
Em entrevista ao Sul21, Josué Martins fala sobre a situação financeira do Rio Grande do Sul, do impacto negativo que o acordo de 1998 teve na economia do Estado e sobre as medidas que o governo José Ivo Sartori (PMDB) vem adotando para lidar com a crise. Para o auditor, Sartori não leva a comparação que faz entre a situação do Rio Grande do Sul e a da Grécia até suas últimas consequências. “A política que levou a Grécia à situação em que se encontra hoje é a política de austeridade fiscal, de diminuição do tamanho do Estado, de privatizações, de esforço desumano para pagar a dívida. É a mesma política de austeridade que ele tenta implantar aqui e que segue a mesma lógica do contrato de 1998”, assinala Martins, defendendo que a política de desmonte dos serviços públicos põe em questão a própria sobrevivência do Estado. “A base do Estado é a prestação de serviços e isso depende de gente, de seres humanos que trabalham. Sem servidores públicos, não há serviços públicos e não tem Estado”.
Sul21: O seminário realizado na última sexta-feira, pela Auditoria Cidadã da Dívida, na Faculdade de Economia da UFRGS, debateu vários fatores causadores do agravamento da crise da dívida do Rio Grande do Sul. Entre eles, um dos mais citados foi o acordo de renegociação da dívida de 1998. Em que esse acordo contribuiu para que chegássemos na situação atual?
Josué Martins: Esse contrato feito em 1998 com a União tem duas características que precisam ser destacadas. A primeira é que ele retirou do Estado a autonomia para a gestão das próprias finanças. A segunda é que foi um acordo caro para o Rio Grande do Sul, diferentemente do que se vendeu na época de que seria um bom negócio para sanear as finanças do Estado. Os dados hoje mostram que esse acordo serviu para manter o Estado em um alto patamar de endividamento. Em 1994, no ano do Plano Real, a nossa dívida, em valores atualizados para dezembro de 2014, estava em torno de R$ 22 bilhões de reais, Em 1998, ano do acordo, ela já estava em R$ 50 bilhões. Então, ela subiu quase 30 bilhões de reais em quatro anos, dando um salto elevado, muito em função da política do governo federal na época.
Sul21: Quais foram os fatores que provocaram essa elevação?
Josué Martins: O Plano Real trabalhou com a ideia de que, com elevadas taxas de juros, se conseguiria deter a inflação. Essa elevação das taxas de juro fez com que a dívida dos Estados subisse para níveis estratosféricos, o que está expresso neste pulo de quase 30 bilhões de reais em apenas quatro anos. De 1998 até o final de 2014, a nossa dívida bateu em R$ 54 bilhões, com uma pequena variação de 4 bilhões de reais neste período de dezesseis anos. A arquitetura financeira desse contrato com a União firmado em 1998 teve um papel importante na manutenção do nível de endividamento do Estado.
Em 1999, um ano depois da elaboração do contrato, o Tribunal de Contas disse que esse contrato era lesivo ao Rio Grande do Sul, pois retirava autonomia financeira do Estado e era caro. Aquilo que nós pagávamos da dívida, até então, comprometia algo em torno de 8% da receita do Estado. O contrato firmado em maio de 1998 estabelecia um teto de 13%. Ao longo dos anos, se comprovou o que meus colegas auditores apontaram na época. A média do comprometimento da nossa receita com o pagamento da dívida subiu de 8%, nos anos anteriores, para 16% ao longo desse período de 1998 até 2014. Esses dados são da própria Secretaria da Fazenda, divulgados no Relatório Anual da Dívida Pública.
A arquitetura financeira desse contrato de 1998 repousava em uma visão neoliberal que defendia a diminuição do tamanho do Estado, com o pressuposto de que um Estado forte afastaria os investimentos privados. Na verdade, o que ocorre não é isso. O Estado precisa estar presente na economia, cuja dinâmica depende fortemente dos investimentos públicos. Os empresários também precisam de segurança para investir. Já tivemos vários exemplos na história de que a economia capitalista, deixada à própria sorte, é autofágica e predatória. A ação do Estado garante um mínimo de estabilidade na economia e condições institucionais de segurança para o empresário investir. Da mesma forma, o Estado precisa prestar serviços públicos de qualidade em áreas como saúde e educação. Já o Estado mínimo significa fazer fortes ajustes no salário dos servidores públicos e nos investimentos públicos, e privatizar patrimônio público.
Sul21: Um dos pontos implicados pelo acordo de 1998 era a privatização do Banrisul. Entre os defensores desse acordo, há quem diga que ele só não funcionou como deveria porque não foi levado até o fim, com medidas como a venda do Banrisul. Qual sua opinião sobre isso?
Josué Martins: O Banrisul foi um dos poucos bancos estaduais que não foi privatizado na época. O banco público é um importante instrumento de política econômica. O Banrisul oferece crédito imobiliário, crédito para a agricultura, para pequenos e médios empresários, e está presente em todos os municípios do Estado. Imagina o que é uma pequena comunidade sem um banco. Ele tem uma função social importante e uma função econômica significativa. O Banrisul hoje é lucrativo em prol do Estado. Se o banco tivesse sido privatizado esse lucro não estaria servindo ao Estado mas sim à iniciativa privada. Que sentido faz isso? Para que sanear uma empresa pública e entregá-la à iniciativa privada?
Essa foi a lógica de todas as privatizações realizadas no período do Plano Real. Foi o caso da CRT (Companhia Riograndense de Telecomunicações) aqui no Rio Grande do Sul, por exemplo. A CRT tinha feito pesados investimentos em tecnologia e estava pronta para entrar no mercado da telefonia móvel. Todo o seu parque tecnológico foi atualizado para isso e a empresa acabou sendo entregue para a iniciativa privada exatamente no momento em que estava pronta para dar um grande salto de qualidade na direção de uma área extremamente lucrativa. Esse lucro poderia ter sido revertido para o Estado como um todo.
Sul21: O governador José Ivo Sartori vem comparando a situação do Rio Grande do Sul com a da Grécia? Essa comparação é pertinente?
Josué Martins: O governador não leva essa comparação até suas últimas consequências. A política que levou a Grécia à situação em que se encontra hoje é a política de austeridade fiscal, de diminuição do tamanho do Estado, de privatizações, de esforço desumano para pagar a dívida. É a mesma política de austeridade que ele tenta implantar aqui e que segue a mesma lógica do contrato de 1998 que, é bom lembrar, é anterior à Lei de Responsabilidade Fiscal. Esqueci de mencionar antes que a Lei de Responsabilidade Fiscal também faz parte dessa arquitetura financeira, pois privilegia o pagamento da dívida. Ela estrutura as finanças do Estado para que esse possa seguir pagando a dívida. O superendividamento estatal está na base do Plano Real. Esse plano trocou o controle da inflação pelo superendividamento. E, para garantir o pagamento dessa dívida, aprovou a Lei de Responsabilidade Fiscal e outros dispositivos legais.
Sul21: Alguns autores usam hoje a expressão “sequestro do Estado pelo capital financeiro” para designar o modelo que surgiu a partir daí. A gênese desse sequestro estaria, então, no Plano Real?
Josué Martins: Sim, com certeza. Nós trocamos inflação por superendividamento. Houve um grande pacto de classes, favorecendo especialmente as classes rentistas, mas também fundos de pensões e empresas privadas que têm um braço no sistema financeiro. Tudo isso vem lá de 1994.
Sul21: Parece haver uma ironia histórica no caso do Rio Grande do Sul, na medida em que o governador Sartori anuncia agora que pretende contestar judicialmente o acordo que ajudou a aprovar em 1998. Mas, pela análise que você apresentou até aqui, mudar os termos desse contrato parece implicar algum tipo de ruptura e enfrentamento com o sistema financeiro…
Josué Martins: A partir do contrato da dívida dos Estados com a União, as finanças estaduais passaram a estar alinhadas com essa lógica da supremacia do sistema financeiro sobre as necessidades dos povos. A economia dos Estados, neste modelo, está voltada para o pagamento da dívida. Chega a ser irônico, de fato, pois o governador Sartori era presidente da Assembleia Legislativa na época e estava na base de sustentação dessa política lá atrás.
Quando a crise se aguça, as consciências também vão tomando forma e ganhando corpo. É preciso que a sociedade passe a ficar muito atenta para essa questão. O enfrentamento a ser travado não é só jurídico, mas político também. Ele tem que ter uma base de sustentação social e política. A coordenação unificada dos servidores públicos definiu quatro dias de paralisação a partir do início desta semana, contra o parcelamento dos salários e em defesa dos serviços públicos. Estamos vendo que a essência das propostas do governador é o desmonte do aparelho do Estado. A proposta de extinção de algumas fundações é um exemplo disso. A Fundação Zoobotânica não custa praticamente nada para o Estado e tem um valor enorme do ponto de vista do conhecimento. É a única instituição do Sul do país, por exemplo, que produz soro antiofídico, sem contar toda a pesquisa acumulada que tem sobre a fauna e a flora gaúcha.
Sul21: Alguns integrantes e apoiadores do governo atual dizem que a causa principal pelo agravamento da crise financeiro foram os aumentos salariais concedidos ao funcionalismo público. Você concorda com essa avaliação?
Josué Martins: O governo anterior fez uma opção pela valorização do serviço público. Eu não tenho como criticar essa escolha. Foi uma opção que fugiu dessa lógica financeira e financista que está por trás do contrato da dívida. Se formos fazer uma análise fria que, em geral, é a forma como o sistema financeiro age, a resposta é sim, aumentou a dívida. Mas há outras coisas envolvidas aí que devem ser consideradas. É mais do que justo, por exemplo, que os servidores da segurança tenham obtido uma recomposição de perdas salariais no governo anterior. Só que, infelizmente, a justiça parece não estar em pauta aqui. O que está em pauta é a capacidade do Estado pagar seus compromissos financeiros. A dignidade e os direitos dos servidores, bem como a qualidade dos serviços públicos, acabam passando ao largo dessa discussão.
Como é que o Estado vai ter capacidade de prestar adequadamente um serviço se não remunerar de forma digna seus servidores? A base do Estado é a prestação de serviços e isso depende de gente, de seres humanos que trabalham. Sem servidores públicos, não tem Estado, não tem prestação de serviços adequada à sociedade, não tem saúde, educação nem segurança. A Brigada Militar tem um déficit que equivale ao dobro do efetivo atual. Ou seja, ela teria que ter o dobro do efetivo atual. Como é que esses colegas vão prestar um serviço adequado? Além disso, olhe o grau de risco a que estão submetidos. Um efetivo menor significa também uma maior exposição ao risco. E isso se repete em várias áreas do Estado.
O governo Tarso Genro fez uma opção de recompor os serviços públicos, fugindo dessa lógica do sistema financeiro. Se eu tivesse que fazer uma crítica ao governo Tarso não seria esta, mas sim a de não ter enfrentado adequadamente o sistema financeiro, entrando tardiamente no processo de discussão da dívida, obtendo a aprovação de uma lei que minimiza o nosso problema, mas não resolve.
Sul21: O trabalho da Auditoria Cidadã da Dívida vem ganhando maior visibilidade aqui no Estado a partir do agravamento da crise financeira. Você poderia falar um pouco mais sobre esse trabalho e quais são seus objetivos no atual cenário?
Josué Martins: O foco da Auditoria Cidadão da Dívida é fazer acontecer a auditoria da dívida da União, o que está previsto na Constituição Federal. O movimento possui núcleos nos Estados que apoiam essa iniciativa em nível nacional, mas também estão defendendo a auditoria da dívida dos Estados. É essencial saber, do montante que se deve, como é que ele foi composto. O que é dívida que deve ser paga e o que é que exigiria outro tratamento? Você não faz isso sem uma auditoria. O presidente do Equador, Rafael Correa, fez isso entre 2008 e 2009. Ao fazer a auditoria, foi possível constatar uma série de irregularidades que permitiam dizer que uma parte importante da dívida já estava paga. Havia dívida prescrita, cobrança de juros sobre juros, taxas administrativas escorchantes e outros itens. A auditoria, composta por especialistas internacionais e do Equador, calculou tudo isso e concluiu que a dívida mobiliária do Equador (a dívida em títulos) já estava paga.
O presidente Rafael Correa suspendeu imediatamente o pagamento dos juros e, depois, chamou os credores e disse que pagaria 30% do valor dessa dívida. O que aconteceu? 95% dos credores aceitaram a proposta. O resultado disso é que, no ano seguinte, se inverteu significativamente a parcela do orçamento do Equador destinada à dívida e aquela destinada aos gastos sociais. Baixou muito o que se gastava com dívida e aumentou significativamente o gasto social. Diferentemente daquilo que se dizia, que se você enfrentar o sistema financeiro sai automaticamente do mercado, o Equador continuou no mercado e conseguiu captar recursos para financiar seus gastos sociais. Então, há muitas miragens e mitos neste debate. Esse fenômeno do superendividamento é resultado também dos super lucros dos bancos e de algumas empresas que não conseguem mais aplicar no setor produtivo e olham para a dívida pública como aplicação mais segura. A dívida pública está lastreada na riqueza das nações, naquilo que as nações produzem. Quer algo mais garantido que isso?
Sul21: Estamos falando de um canal de drenagem permanente de recursos públicos para o setor financeiro. É isso?
Josué Martins: Exatamente. É uma grande bomba de sucção de recursos públicos, que se articula com o sistema tributário, pois é daí que o Estado arrecada esse dinheiro que será transferido para o sistema financeiro.