GENEBRA - O relator da ONU para Dívida Externa e Direitos Humanos, Juan Pablo Bohoslavsky, foi surpreendido no fim de fevereiro quando foi informado pelo governo brasileiro de que sua missão ao País, marcada para março, estava suspensa e que uma nova data seria apresentada. Mais de um mês depois, porém, ele ainda não recebeu das autoridades do Itamaraty qualquer tipo de indicação sobre quando ele poderia vir ao Brasil.
Sua missão seria a de avaliar o impacto das medidas de austeridade em programas sociais, incluindo educação e saúde. O governo explicou no início de março o motivo para a mudança de planos. Em um discurso, a embaixadora do Brasil na ONU, Maria Nazareth Farani Azevedo, insistiu que "a visita teve de ser adiada, não cancelada". "O Brasil tem muito a mostrar e nada a esconder", garantiu.
No governo, a justificativa era de que a viagem foi suspensa por conta da saída da ministra de Direitos Humanos, Luislinda Valois, demitida pelo presidente Michel Temer. Em função da "transição" no ministério, a viagem teria sido adiada. Mas a suspeita na ONU é de que a visita era vista como obstáculo para a reforma da Previdência e em um momento de debate político sobre eventuais candidaturas para as eleições no segundo semestre. Também na ONU, o Brasil não votou a favor da manutenção de seu mandato.
Em sua primeira entrevista depois da suspensão de sua viagem, ele faz suas considerações sobre a necessidade de equilibrar políticas fiscais e medidas de proteção aos direitos humanos. Eis os principais trechos da entrevista:
P - Sua viagem ao Brasil foi suspensa. O sr. já recebeu uma nova data?
R - Como você sabe, todos os procedimentos especiais (da ONU), como o meu, precisam realizar duas viagens oficiais aos países a cada ano. As datas são acordadas com o governo. No caso do Brasil, essas datas de março de 2018 foram fixadas em agosto de 2017, com o governo. A visita oficial foi adiada no fim de fevereiro de 2018, quando eu fui informado que, diante das mudanças no Ministério da Justiça, não era mais possível realizar a visita oficial. Eu entendo que o governo irá propor novas datas. Mas até o dia 13 de abril eu não as recebi. Ainda estou esperançoso de que as novas datas sejam confirmadas nas próximas semanas.
P - O Brasil votou contra o mandato do sr. Isso é algo que o preocupa?
R - Eu espero que países que não apoiam o meu mandato entendam, mais cedo ou mais tarde, que promover os direitos humanos para lidar com assuntos financeiros é do interesse da paz mundial, da igualdade e de um crescimento inclusivo.
P - De uma forma geral, qual a conclusão que o sr. tira sobre medidas de austeridade?
R - Políticas de austeridade tem caminhado, infelizmente, junto com um processo que mina os direitos humanos. Por exemplo, cortes orçamentários em vários países afetaram os direitos à educação, saúde, alimentação, moradia, trabalho, previdência, água e saneamento, assim como direitos políticos e civis, tais como acesso à Justiça, direito de participação, liberdade de expressão e associação. Elas também tem resultado em uma deterioração nas condições de detenção e de prisões. O direito à vida e integridade pessoal não foram poupados. Crises econômicas são aprofundadas por políticas de austeridade e aumentaram os índices de suicídio em alguns países. Elas resultaram ainda na exclusão de pessoas de serviços de saúde pública e enfraqueceram esses sistemas ao ponto de que passaram a não ser equipados para responder a epidemias.
P - Mas a Comissão Europeia argumenta que, apesar do caso da crise de 2012, a estratégia de reformas e austeridade funcionou. O sr. concorda?
R - Como eu expliquei no informe de minha missão para a UE no ano passado, a consolidação fiscal e políticas de reforma estrutural implementadas em vários países da região europeia na prática aprofundaram a recessão econômica e aumentou o desemprego e pobreza. Cortes drásticos aos gastos públicos sobre proteção social, saúde e educação colocam dúvidas se um governo está dando prioridade suficiente à proteção de grupos vulneráveis do impacto da crise.
P - Mas se o corte de gastos sociais não é a solução, como fazer para garantir um estado com responsabilidade social?
R - Bem, garantir a estabilidade financeira e controlar a dívida pública são tarefas importantes. Nem todos os esforços para reduzir gastos públicos são danosos aos direitos humanos. Olhe para a experiência da Islândia. Melhorar o acesso aos remédios essenciais por meio de uma melhor administração de medicações no sistema público e substituir produtos caros por produtos genéricos, da mesma qualidade e mais baratos, pode aumentar o acesso e fortalecer o direito à saúde. Cortar gastos militares desnecessários em hardware pode também liberar muitos recursos para investimentos em direitos humanos. Além disso, reformas de previdências que incentivem o trabalho em tempo parcial de aposentados e o aumento da idade de aposentadoria dependendo da categoria de emprego, escolha individual ou saúde pessoal podem ser caminhos para garantir a sustentabilidade de sistemas de pensão. E para garantir que o direito à segurança social para as gerações atuais e futuras durante um ciclo de vida mais longo. A questão é que o respeito aos direitos humanos e um crescimento econômico inclusivo não são necessariamente opostos. Mas podem se reforçar mutuamente. Crescimento econômico e desenvolvimento são essenciais para o desenvolvimento humano e para a realização dos direitos humanos, como na geração de empregos, oportunidades de renda, assim como investimentos em infraestrutura social e econômica. É por isso que padrões de direitos humanos precisam ser considerados ao se decidir sobre escolhas de política econômica.